THE CHESHIRE CAT
Un petit mot da nossa bombástica Confrade (merci!) a propósito da sua propensão mais anglófila que francófila, lembrou-me o caro parente Archie e a sua mirabolante aproximação à língua francesa. Por associação de ideias, veio-me com alguma ternura a lembrança de um já longínquo Natal onde precisamente pela mão de Archie me calhou em sorte uma bela edição de Alice in Wonderland com as ilustrações originais de Tenniel. O gesto tinha conotações mais graves e profundas do que a mera simpatia, já que hoje percebo que a minha inocente infância acobertou lutas mais cruentas que as campanhas de Souvourov pelo domínio da influência no mundo lúdico da criança que era. Da banda materna, para lá de uns glóbulos gauleses que geração após geração abusivamente se acavalavam para lembrar, pertinazes, uma ténue ligação à França pré-revolucionária, havia uma muito querida Tia minha, que, viúva de um gentilhomme literaire e havia anos definitivamente regressada de Paris fugida aos Hunos, apostava os ócios no desvelo de afrancesar este vosso e então bem pequeno criado. Da banda paterna, o Primo Archie contava espingardas para defender o mesmo infante, creio que acicatado pelo ódio vesgo que votava à velha Senhora, que conhecera na Riviera. No que, aliás, era soberanamente retribuído; a Tia referia-se-lhe como “l’ivrogne”, Archie respondia com o seu mais habitual e burilado insulto gaulês: “viaux cuwir”.
Faltando-lhes outro meio ou oportunidade de se degladiarem, entre os sete e os doze anos a educação literária da pobre criança foi o chão escolhido para uma luta de personalidades titânicas. A minha Tia, qual uma antiquada Grande Berta, vomitava com regularidade obuses como os Récits tirés de l’Histoire de Rome, Les Rois Martyrs ou mesmo um róseo e anafado Petit Larousse Illustré (cru 1922), ao mesmo tempo que napoleonicamente fazia avançar sobre mim cansados regimentos e esquadrões de Jules Verne de dura capa encarnada, verde e castanha, apoiados pelos voltigeurs da Condessa de Ségur.
Mais jovem e mais dinâmico, o primo Archie, com o garbo e a mobilidade de um Marlborough, largava a metralha cerrada de mil e uma publicações novinhas que a velha Albion melhor que ninguém concebia para a educação viril da rapaziada do pós-guerra, ainda moldada ao estilo dos jovens aventureiros da Enid Blyton, saudáveis, despachados e alheios à interculturalidade. Minha Tia jogava com a vantagem da proximidade da sua misteriosa biblioteca da Duque de Ávila, o primo Archie com a emoção dos pacotes e dos selos do correio real britânico trazidos ás minhas pequenas mãos pelo Nunes carteiro.
Assim, do alto da colina de literatura juvenil franco-britânica que ainda hoje guardo, vista de longe, a minha infância sugere um gigantesco mapa de campanhas militares, onde natais, aniversários e férias correspondiam a Blenheims, Waterloos, Austerlitzs e Borodinos onde a sorte da batalha se jogava segundo o mood caprichoso ostentado nas preferências do infante.
A campanha decidiu-se teria eu os meus onze ou doze anos; para consternação da Tia encerrei a infância fixando-me definitivamente (cabeceira, desenhos, leituras, tiradas, inspirações…) no mais antiquado cartucho do armamento do primo Archie: a tal edição vitoriana de Alice, onde no mundo mágico de Carroll pontificava o Cheshire Cat. O fabuloso, ubíquo, sábio, sarcástico e misterioso gato tornou-se, assim, um companheiro, um amigo secreto, um conselheiro e um fascínio permanente sustentado pelos desenhos de Tenniel. Quando outros queriam ter destinos cavalheirosos, eu queria ser o Cheshire Cat, e mais de uma vez dominei a timidez imaginando-me desaparecido e irónico para espanto dos adultos. Confesso que foi o único gato da minha vida e às vezes, nas encruzilhadas da maturidade, ainda me surpreendo a recordar secretamente by heart as linhas de Alice
Un petit mot da nossa bombástica Confrade (merci!) a propósito da sua propensão mais anglófila que francófila, lembrou-me o caro parente Archie e a sua mirabolante aproximação à língua francesa. Por associação de ideias, veio-me com alguma ternura a lembrança de um já longínquo Natal onde precisamente pela mão de Archie me calhou em sorte uma bela edição de Alice in Wonderland com as ilustrações originais de Tenniel. O gesto tinha conotações mais graves e profundas do que a mera simpatia, já que hoje percebo que a minha inocente infância acobertou lutas mais cruentas que as campanhas de Souvourov pelo domínio da influência no mundo lúdico da criança que era. Da banda materna, para lá de uns glóbulos gauleses que geração após geração abusivamente se acavalavam para lembrar, pertinazes, uma ténue ligação à França pré-revolucionária, havia uma muito querida Tia minha, que, viúva de um gentilhomme literaire e havia anos definitivamente regressada de Paris fugida aos Hunos, apostava os ócios no desvelo de afrancesar este vosso e então bem pequeno criado. Da banda paterna, o Primo Archie contava espingardas para defender o mesmo infante, creio que acicatado pelo ódio vesgo que votava à velha Senhora, que conhecera na Riviera. No que, aliás, era soberanamente retribuído; a Tia referia-se-lhe como “l’ivrogne”, Archie respondia com o seu mais habitual e burilado insulto gaulês: “viaux cuwir”.
Faltando-lhes outro meio ou oportunidade de se degladiarem, entre os sete e os doze anos a educação literária da pobre criança foi o chão escolhido para uma luta de personalidades titânicas. A minha Tia, qual uma antiquada Grande Berta, vomitava com regularidade obuses como os Récits tirés de l’Histoire de Rome, Les Rois Martyrs ou mesmo um róseo e anafado Petit Larousse Illustré (cru 1922), ao mesmo tempo que napoleonicamente fazia avançar sobre mim cansados regimentos e esquadrões de Jules Verne de dura capa encarnada, verde e castanha, apoiados pelos voltigeurs da Condessa de Ségur.
Mais jovem e mais dinâmico, o primo Archie, com o garbo e a mobilidade de um Marlborough, largava a metralha cerrada de mil e uma publicações novinhas que a velha Albion melhor que ninguém concebia para a educação viril da rapaziada do pós-guerra, ainda moldada ao estilo dos jovens aventureiros da Enid Blyton, saudáveis, despachados e alheios à interculturalidade. Minha Tia jogava com a vantagem da proximidade da sua misteriosa biblioteca da Duque de Ávila, o primo Archie com a emoção dos pacotes e dos selos do correio real britânico trazidos ás minhas pequenas mãos pelo Nunes carteiro.
Assim, do alto da colina de literatura juvenil franco-britânica que ainda hoje guardo, vista de longe, a minha infância sugere um gigantesco mapa de campanhas militares, onde natais, aniversários e férias correspondiam a Blenheims, Waterloos, Austerlitzs e Borodinos onde a sorte da batalha se jogava segundo o mood caprichoso ostentado nas preferências do infante.
A campanha decidiu-se teria eu os meus onze ou doze anos; para consternação da Tia encerrei a infância fixando-me definitivamente (cabeceira, desenhos, leituras, tiradas, inspirações…) no mais antiquado cartucho do armamento do primo Archie: a tal edição vitoriana de Alice, onde no mundo mágico de Carroll pontificava o Cheshire Cat. O fabuloso, ubíquo, sábio, sarcástico e misterioso gato tornou-se, assim, um companheiro, um amigo secreto, um conselheiro e um fascínio permanente sustentado pelos desenhos de Tenniel. Quando outros queriam ter destinos cavalheirosos, eu queria ser o Cheshire Cat, e mais de uma vez dominei a timidez imaginando-me desaparecido e irónico para espanto dos adultos. Confesso que foi o único gato da minha vida e às vezes, nas encruzilhadas da maturidade, ainda me surpreendo a recordar secretamente by heart as linhas de Alice
"... and she went on. "Would you tell me, please, which way I ought to go from here?"
"That depends a good deal on where you want to get to," said the Cat.
"I don't much care where –" said Alice.
"Then it doesn't matter which way you go," said the Cat.
"– so long as I get somewhere," Alice added as an explanation.
"Oh, you're sure to do that," said the Cat, "if you only walk long enough."
Alice In Wonderland - Revisitada por Disney
"Alice meets the Cheshire Cat". Not so magic...
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