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Je Maintiendrai

"... Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche". Pol Vandromme

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Tuesday, January 17, 2006







VARIAÇÕES
SOBRE O
TEMA DA
TRAIÇÃO


Entre as ninharias que muitas vezes nos saem ao caminho quando dados ao trabalho de pensar sobre as grandezas e as misérias do ser humano em cativeiro, nesse cativeiro que é a sociedade, o fenómeno da traição sempre me interessou. Refiro-me à traição “política”; ditada pelo mistério das circunvoluções da mente humana, cascalhosa e miserável nas mais das vezes, adquire, porém, ocasionalmente, uma grandeza e uma estética própria que assenta nos pilares do inesperado, da intrincada trama da duplicidade construída e vivida em extremos, da total amoralidade de um desinteresse absoluto, num mistério que escapa aos referenciais explicativos do vulgar oportunismo.
Vêm todas estas elaboradas considerações a propósito do meu cabaz mensal de leituras de desfastio. Como o fastio anda na proporção inversa da preguiça, e não tenho o passo elástico e ginasticado do confrade de Port Royal (para mais calçadinho nos botázios do Google), o cabaz é magro e só lá tem dentro dois bouquins. O primeiro, o belíssimo estudo biográfico que Miranda Carter dedicou a Sir Anthony Blunt, o refinado historiador de arte, formado nos devaneios mefíticos de Bloomsbury e dos Apostles de Cambridge, o “Fourth Man” do “Cambridge Ring”, o decantado grupo de espiões britânicos (Philby, Burgess, Maclean) ao serviço do KGB durante a Guerra Fria. Anthony Blunt: His Lives, é o irónico e apropriadíssimo título de uma obra fascinante sobre o carácter sombrio de um dos grandes historiadores de arte do séc. XX (memoráveis os seus dois estudos sobre Poussin e Borromini), o aristocrático cultor das virtudes do estoicismo, doublé de todos os atributos daquele que convencionalmente se apoda com toda a propriedade de traidor, à sua pátria e ao seu meio. O interesse psicológico e cultural da obra de M. Carter não reside no facto simples de se debruçar sobre um traidor de nomeada; a literatura não é parca sobre o género, e dentro do clássico fiquemo-nos pelo Talleyrand ou le cynisme, de Castelot ou o Fouché de Zweig, precisamente por balizarem os dois extremos da elaboração refinada ou da vilania brutal de uma mesma tipologia de carácter. O bel tenebreux da história de Blunt é diferente pela implicação do elemento da duplicidade de vida levada aos extremos duma contradição absoluta que sustenta a inverosimilidade, e que nos leva a admirar pela pena de Ms. Carter a técnica bluntiana da sua construção e da sua gestão.
Sir Anthony Blunt era sobretudo um esteta. Lord Londonderry era sobretudo um estúpido. É este segundo o objecto da biografia que constitui o 2º livro caído no meu cabaz: Making Friends with Hitler: Lord Londonderry and the Roots of Appeasement, de Ian Kershaw, além de constituir-se como uma brilhante digressão sobre o círculos bem pensantes da sociedade britânica onde germinou com facilidade a política do appeasement, é também um exercício sobre a estupidez humana, precisamente quando o seu fautor é um político, e, sobretudo, um político dotado de uma auto-imagem proporcional a essa mesma estupidez. Pertencente a uma categoria substancialmente diferente da de Blunt, nem por isso Lord Charles Stewart Henry Vane-Tempest-Stewart, no rescaldo dos falhanços desse appeasement deixou de ser rotulado no seu tempo como um traidor, valhendo-lhe a glória póstuma e ambígua de ter servido de modelo a Lord Darlington, a bem mais interessante personagem de The Remains of the Day de Kazuo Ishiguro.
Para mero exercício de estilo, puxei pela cabeça com a esperança temerosa de encontrar no torrão alguém que desse pano e tema à erudição biografística de Pacheco Pereira ou da MF Mónica, ou, quiçá, um romance do Tavares. Depois de muitas voltas só me lembrei do D. Cristóvão de Moura (aliás, muito bem biografado em Espanha por Alfonso Danvila); não serve: é antigo e está muito gasto. Percamos as esperanças, Portugal, sobretudo o Portugal contemporâneo, nunca produziu traidores. Oportunistas, arranjistas, vira-casacas, isso sim. Agentes do KGB também os teve em barda, mas aqui isso pelos vistos não conta. Seja como for, também eram uns labregos; sabiam lá quem era o Poussin e onde fica Cambridge!

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