EL MAESTRO DE ESGRIMA
D. Javier era Mestre d’Armas. Foi-me recomendado por um amigo, quando, estacionado em Madrid, ainda tinha eu a ilusão que o exercício disciplinador da esgrima clássica poderia dar uma resposta apaziguadora a algumas inquietações…
As lições duraram enquanto duraram, mas ficou o hábito com que as selávamos de almoçarmos num que outro Sábado, não longe da Calle León e da Real Academia, onde D. Javier remediadamente vivia com uma irmã corcunda, Doña Luísa. Acredito que se me tenha afeiçoado por quebra da rotina e pendor inconsciente para uma excentricidade que já não esperava nos seus setenta e muitos anos. Espírito curioso e ocasionalmente picaresco, D. Javier parecia nutrir um gosto sincero em ouvir-me discretear sobre andanças nos Brasis e nas Ásias, pontuando-me os relatos (deliberadamente hiperbolizados) das grandezas amazónicas ou orientais com surdos, graves e reverentes hombre!, ou um vaya! Ocasionalmente, assomava-lhe um brilho malicioso aos olhinhos cor de azeitona preta, e embaraçava-me com inesperadas perguntas bizantinas sobre a antropometria peitoral do que chamava las mulatonas brasileñas, ou a anatomia íntima de las chinas, categoria genérica em que englobava todas as fêmeas viventes para lá das Filipinas.
Encantava-me esse homem baixinho, escanhoado e seco, de nariz adunco, dos últimos dos que em Madrid ainda usavam da velha capa “à espanhola”. Só quem conheceu esse desaparecido símbolo do casticismo madrileno poderá imaginar quão bem lhe caía essa tão ruça como antiquada toilette, rematada junto à gola por um vistoso fecho de prata antigo.
D. Javier falava um castelhano cerrado, sóbrio e rigoroso na forma, com uma dignidade só quebrada quando qualquer alusão à política espanhola lhe fazia semear pelas frases, usualmente de uma sobriedade agreste, um espantoso rosário de cabrones, maricones, hijos de puta, pijasflojas, etc. que me faziam rir às lágrimas.
D. Javier era um homem com uma visão simples e categórica da vida e dos homens, visão pautada pelo ditame que lhe ouvi muitas vezes brotar em tom de martelado e ríspido conselho: todo con moderación, todo con moderación…
Mas para D. Javier o centro do mundo era, inequivocamente, a Espanha. A Espanha grande e una, não a franquista mas ainda a castelhana, de lavra filipina, a de Lepanto, a do Escorial, de Alba, de Cervantes, de Lope, de Velasquez… Ao mundo em redor adivinhava-se nos seus repentes opinativos que o considerava como a um cenário pitoresco, onde enjaulava em categorias definitivas de geografia humana os alemães (anchos), os ingleses (borrachos), os americanos (tontitos) os franceses (gavachos), os italianos (cabrones) e os portugueses (gallegos).
Como o personagem de Perez Reverte, D. Javier era um abencerragem do velho mundo das salas d´armas, um amante do sabre, que não desdenhava recolher-se na sua saleta dedilhando numa guitarra puída melodias de antigas zarzuelas ou de chotís madrilenos, de que era grande entendido e crítico exigente. Recordo-me que na tal saleta romântica onde nos sentávamos para uma infusión silenciosamente servida por Doña Luísa, pontificava junto a um oratório e em companhia de dois ou três esgrimistas de nome, uma fotografia dedicada de Victoria de Los Angeles, que elegera como a mais elevada intérprete da nobre arte da zarzuela, e --- que saudade! --- eram tantas as que com ele aprendi a gostar: La Tempranica, La Gran Via, La Corte del Faraón, Los Claveles, La Leyenda del Beso…
Naturalmente discreto, duas coisas só mais tarde descobri sobre D. Javier: o berço fidalgo que o trato deixava adivinhar mal coberto por uma discrição tão própria da pobreza digna, e a militância nas hostes da cruzada em episódios de guerra calados que só sei lhe terem valido uma venera e a correspondente pensão. Para além disto, nunca tive bem a noção do como ocupava D. Javier os seus ócios de jubilado (não sei de quê…), para além das poucas lições de esgrima e das velhas tertúlias de bairro, ficando eu sempre com a impressão que uma qualquer actividade misteriosa lhe vertebrava os dias. Todavia, nunca me recusou os convites que (sabendo que lhe agradavam) periodicamente lhe dirigia para visitarmos juntos S. Lourenço do Escorial. Ignorava lugubremente o Vale dos Caídos, mas animava-se com a perspectiva do ritual da saída pela manhãzinha pela Praça de Espanha, da subida para a serra, da chegada a S. Lourenço, do giro solitário pelos corredores gelados que percorria em passo marcial em busca da sombra de Filipe O Grande, do almoço de asado no Guadarrama e da perspectiva de debitar al portugués opiniões e mais opiniões sobre esgrima, sobre zarzuelas, sobre o mundo intra ou extra limes, onde o limes era Castela, ou quando muito, se estava bem disposto, Espanha.
D. Javier morreu subitamente, fulminado quando regressava uma tarde a casa. Pouco tempo passado, voltei a Madrid e ainda visitei Doña Luísa. “A Javier le dabas mucha ilusión”, disse-me ela na saleta do costume. Coisa para apreciar, decerto, pois ainda tentava eu perceber o alcance da frase, já D. Luisa me punha nas mãos uma caixinha com os fechos de prata da capa espanhola de D. Javier. Ainda hoje me comovo quando a encontro na gaveta das coisas infantilmente queridas. Também só nessa altura D. Luísa me revelou a oculta e regular ocupação do velho mestre d´armas, irmão laico havia muitos anos de uma qualquer corporação religiosa que se dedicava a visitar e a lavar os desventurados dos asilos e dos hospitais.
De tudo isto me lembrei no outro dia, sentado meio gelado na Plaza Mayor de Madrid. Inevitavelmente veio-me à memória a imagem de D. Javier, das suas caturreiras e da sua candura, da sua senhorialidade e da sua simplicidade. Exactamente no mesmo local onde anos antes, num verão sufocante e atormentado com os guinchos lancinantes de uma criança inquieta que os pais deixavam à solta, o velho D. Javier, exasperado, fincou colérico as mãos na cadeira de ferro e largou num brado roufenho da cigarrilha: “corten la cabeza al perro!”
D. Javier era Mestre d’Armas. Foi-me recomendado por um amigo, quando, estacionado em Madrid, ainda tinha eu a ilusão que o exercício disciplinador da esgrima clássica poderia dar uma resposta apaziguadora a algumas inquietações…
As lições duraram enquanto duraram, mas ficou o hábito com que as selávamos de almoçarmos num que outro Sábado, não longe da Calle León e da Real Academia, onde D. Javier remediadamente vivia com uma irmã corcunda, Doña Luísa. Acredito que se me tenha afeiçoado por quebra da rotina e pendor inconsciente para uma excentricidade que já não esperava nos seus setenta e muitos anos. Espírito curioso e ocasionalmente picaresco, D. Javier parecia nutrir um gosto sincero em ouvir-me discretear sobre andanças nos Brasis e nas Ásias, pontuando-me os relatos (deliberadamente hiperbolizados) das grandezas amazónicas ou orientais com surdos, graves e reverentes hombre!, ou um vaya! Ocasionalmente, assomava-lhe um brilho malicioso aos olhinhos cor de azeitona preta, e embaraçava-me com inesperadas perguntas bizantinas sobre a antropometria peitoral do que chamava las mulatonas brasileñas, ou a anatomia íntima de las chinas, categoria genérica em que englobava todas as fêmeas viventes para lá das Filipinas.
Encantava-me esse homem baixinho, escanhoado e seco, de nariz adunco, dos últimos dos que em Madrid ainda usavam da velha capa “à espanhola”. Só quem conheceu esse desaparecido símbolo do casticismo madrileno poderá imaginar quão bem lhe caía essa tão ruça como antiquada toilette, rematada junto à gola por um vistoso fecho de prata antigo.
D. Javier falava um castelhano cerrado, sóbrio e rigoroso na forma, com uma dignidade só quebrada quando qualquer alusão à política espanhola lhe fazia semear pelas frases, usualmente de uma sobriedade agreste, um espantoso rosário de cabrones, maricones, hijos de puta, pijasflojas, etc. que me faziam rir às lágrimas.
D. Javier era um homem com uma visão simples e categórica da vida e dos homens, visão pautada pelo ditame que lhe ouvi muitas vezes brotar em tom de martelado e ríspido conselho: todo con moderación, todo con moderación…
Mas para D. Javier o centro do mundo era, inequivocamente, a Espanha. A Espanha grande e una, não a franquista mas ainda a castelhana, de lavra filipina, a de Lepanto, a do Escorial, de Alba, de Cervantes, de Lope, de Velasquez… Ao mundo em redor adivinhava-se nos seus repentes opinativos que o considerava como a um cenário pitoresco, onde enjaulava em categorias definitivas de geografia humana os alemães (anchos), os ingleses (borrachos), os americanos (tontitos) os franceses (gavachos), os italianos (cabrones) e os portugueses (gallegos).
Como o personagem de Perez Reverte, D. Javier era um abencerragem do velho mundo das salas d´armas, um amante do sabre, que não desdenhava recolher-se na sua saleta dedilhando numa guitarra puída melodias de antigas zarzuelas ou de chotís madrilenos, de que era grande entendido e crítico exigente. Recordo-me que na tal saleta romântica onde nos sentávamos para uma infusión silenciosamente servida por Doña Luísa, pontificava junto a um oratório e em companhia de dois ou três esgrimistas de nome, uma fotografia dedicada de Victoria de Los Angeles, que elegera como a mais elevada intérprete da nobre arte da zarzuela, e --- que saudade! --- eram tantas as que com ele aprendi a gostar: La Tempranica, La Gran Via, La Corte del Faraón, Los Claveles, La Leyenda del Beso…
Naturalmente discreto, duas coisas só mais tarde descobri sobre D. Javier: o berço fidalgo que o trato deixava adivinhar mal coberto por uma discrição tão própria da pobreza digna, e a militância nas hostes da cruzada em episódios de guerra calados que só sei lhe terem valido uma venera e a correspondente pensão. Para além disto, nunca tive bem a noção do como ocupava D. Javier os seus ócios de jubilado (não sei de quê…), para além das poucas lições de esgrima e das velhas tertúlias de bairro, ficando eu sempre com a impressão que uma qualquer actividade misteriosa lhe vertebrava os dias. Todavia, nunca me recusou os convites que (sabendo que lhe agradavam) periodicamente lhe dirigia para visitarmos juntos S. Lourenço do Escorial. Ignorava lugubremente o Vale dos Caídos, mas animava-se com a perspectiva do ritual da saída pela manhãzinha pela Praça de Espanha, da subida para a serra, da chegada a S. Lourenço, do giro solitário pelos corredores gelados que percorria em passo marcial em busca da sombra de Filipe O Grande, do almoço de asado no Guadarrama e da perspectiva de debitar al portugués opiniões e mais opiniões sobre esgrima, sobre zarzuelas, sobre o mundo intra ou extra limes, onde o limes era Castela, ou quando muito, se estava bem disposto, Espanha.
D. Javier morreu subitamente, fulminado quando regressava uma tarde a casa. Pouco tempo passado, voltei a Madrid e ainda visitei Doña Luísa. “A Javier le dabas mucha ilusión”, disse-me ela na saleta do costume. Coisa para apreciar, decerto, pois ainda tentava eu perceber o alcance da frase, já D. Luisa me punha nas mãos uma caixinha com os fechos de prata da capa espanhola de D. Javier. Ainda hoje me comovo quando a encontro na gaveta das coisas infantilmente queridas. Também só nessa altura D. Luísa me revelou a oculta e regular ocupação do velho mestre d´armas, irmão laico havia muitos anos de uma qualquer corporação religiosa que se dedicava a visitar e a lavar os desventurados dos asilos e dos hospitais.
De tudo isto me lembrei no outro dia, sentado meio gelado na Plaza Mayor de Madrid. Inevitavelmente veio-me à memória a imagem de D. Javier, das suas caturreiras e da sua candura, da sua senhorialidade e da sua simplicidade. Exactamente no mesmo local onde anos antes, num verão sufocante e atormentado com os guinchos lancinantes de uma criança inquieta que os pais deixavam à solta, o velho D. Javier, exasperado, fincou colérico as mãos na cadeira de ferro e largou num brado roufenho da cigarrilha: “corten la cabeza al perro!”
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