VÍNCULOS
Acreditamos em coisas, em princípios, em valores. Acreditar, é a expressão do sistema dinâmico de adesões ou de crenças que constitui a raiz da nossa racionalidade, decorrendo desse sistema de crenças a miríade de vínculos sobre os quais assenta toda a nossa a vida e a nossa Weltanschauung. Abundância ou complexidade de vínculos nunca foi indicativo de felicidade ou paz de espírito. Recordo que a catequética tradicional nos prevenia justa e continuadamente da má selecção, e sobretudo, do excesso de respeitos. E tanto assim é, que o despojamento próprio das asceses religiosas ou de correntes puramente filosóficas como o estoicismo comungam de um mesmo desiderato prático que é o alívio do eu, uns como condição de perfeita e transcendente comunhão na Divindade, outros como utilitária garantia da felicidade no vale de lágrimas do mundo dos homens. A natural ou despretenciosa sabedoria dos simples, dos grandes e dos justos é precisamente marcada pelo despojamento e pelo reducionismo das crenças às essências.
É a crença “nacionalista” uma essência? Corre na confraria um debate intenso sobre “nacionalismo”, não tanto um debate segundo os cânones tradicionais onde a ideia, como unidade, sustenta a polémica, mas um debate que ainda se vai esvaindo na definição conceptual ou na definição dos planos onde (para cada um) assenta a “logística das ideias”.
Penso que me calha também dizer de meu direito. Colho aqui e ali considerações que na generalidade perfilho; que “as nações pertencem realmente ao domínio da construções humanas, das realizações do homem na história, não constituindo factos da natureza, como parecem pensar alguns tolos” (Sexo dos Anjos), um “bom profiláctico contra as dissoluções delirantes que tantas vezes se acoitam sob a bandeira internacionalista”, e, portanto, um “residual inócuo” quando contrastado com o plano superior da ordem moral (O Jansenista), um plano de exercício de cidadania (assim, cidadania nacional) definido por moldes consagrados na tradição, compatível e, em nosso entender, não miscível com o que alguém definiu como a cidadania do género humano, maxime se tivermos bem clara a escala de valores da lição evangélica e das laborações tomísticas e neo-escolásticas (mihi).
Como Português em Portugal, entendo o problema do nacionalismo estreitamente vinculado à questão da tradição. O nacionalismo subsume-se e ganha sentido na viabilidade da tradição específica de uma nação; o nacionalismo é, assim, simultaneamente, a manifestação de fé na existência da tradição, o grito de unidade lançado ao exterior, o auto-sustento anímico de aceitação de uma construída unidade política.
***
Há tempos, em agradável debate com o confrade Corcunda, falou-se de tradição, em sede de Direito e de Justiça. Retenho só o que na altura contrapunha, i.e. que a “tradição” correctamente destacada e invocada, se constitui como a unidade, manifestação palpável do ajuste continuado das formas aos princípios, e, portanto, da legitimidade das mesmas formas, sejam elas um sistema normativo ou um quadro institucional.
A tradição, é traditio no seu sentido exacto, uma dinâmica que se verifica enquanto ao longo dos séculos houver mãos naturalmente dispostas a formar cadeias por onde um património, erguido, flua naturalmente ao longo desses mesmos séculos. A falta de expontaneidade de oferta dessas mãos, mata a tradição e retira-lhe a legitimidade: a tradição deixa então de ser o património que, vivificando, flui serenamente, passando a exibir-se como uma mera carcaça que vamos atirando mecanicamente para a frente.
Constato com dor que Portugal é hoje um país e uma nação com cada vez menos tradição. O fluxo vital dos valores que me são queridos vem de há muito a ser corroído, e até interrompido, pelo iluminismo burguês, pelo positivismo, pelo marxismo, pelo simples laicismo ou pelo demoliberalismo, com o efeito catalizador das rupturas revolucionárias a que a nossa débil estrutura sócio-cultural tem sido sujeita nos últimos dois séculos e meio.
Ora, não acredito sinceramente nem me obrigo à sujeição a uma ideia nacional num país onde a legitimidade dos valores em que acredito deixou ou está em vias de deixar de existir porque deixaram de fluir ou brotar do que alguém definiu como a “consciência nacional portuguesa”, fazendo-se depender a sua persistência de um esforço de imposição, persuasão ou proselitismo doutrinário, por simpáticos que me sejam os seus fautores.
Valerá a pena combater o bom combate, na esperança de melhores dias? É um facto que durante anos e anos, regime após regime, guerra após guerra, paz após paz, a relativa unidade estruturante dos Portugueses permitiu na quadrícula geográfica a laboração e a sobrevivência de uma ideia de “portugalidade” com os correspondentes sentimentos de identificação e adesão, e até de “cumplicidade” entre portugueses. Há uma frondosa corrente de pensamento e de doutrina que assentou a sua vitalidade, a sua sedução, e até, a sua poesia, no dado adquirido da consistência étnica dos velhos habitantes do torrão nacional, nas marcas deixadas pelo contacto e pela luta continuada face ao meio onde secularmente se fixou, na memória da experiência histórica comum, enfim, na maneira de se ser face à vida e aos outros, que é no fundo o resultado depurado da interacção dos anteriores. Registo Teixeira de Pascoais (na Arte de Ser Português), ou Jorge Dias (Estudos do Carácter Nacional Português), ou Cunha Leão (O Enigma Português) como autores dos que mais aguda e realisticamente desceram às profundezas do ethos nacional. Lamento muito deixar de parte as variações de autores como António Quadros ou Agostinho da Silva, cujo simpático delírio causou estragos ainda difíceis de avaliar em termos da acreditação nos meios da intelectualidade tradicionalista de mitos universalistas e interculturais do género do 5º Império da Portugalidade, do “abraço armilar” ou da lusofonia mística. A essa escatologia (no sentido teológico, precise-se) estamos a vê-la todas os dias no Rossio, no Martim Moniz, no Catujal, na Linha de Sintra, no sucesso da CPLP ou na simpatia com que diariamente nos brindam os “irmãos” africanos ou brasileiros…
Durante a maior parte da nossa História a portugalidade, a tradição e as formas de adesão “nacionalista” que ela suscitava, assentaram em expressões particulares e culturalmente distintas de espiritualidade religiosa, de estética, de adopção de determinadas instituições do Poder, de sentimento histórico, de sentimentos de pertença, de formas de relacionamento social interno e de formas de relacionamento no exterior, de sentido crítico, de sensatez e até de sentido de humor.
A quebra demográfica, a globalização acelerada, a introdução em progressão geométrica do elemento alienígena no tecido nacional, a suburbanização das populações e a decadência do espírito crítico são outros tantes golpes a corroer a viabilidade dessa tradição, e, em simultâneo, a criar os fundamentos de um mundo novo. E chegará o dia em que seremos confrontados --- cada vez mais o somos --- com o facto de que o sentirmo-nos portugueses não se traduz num viver digno numa determinada comunidade de cultura, história e etnia, mas numa vil sujeição aos tiques e aos ritmos de uma promiscuidade de vulgaridades, de folclores e de tribus, que nem sequer é ou já será a portuguesíssima “apagada e vil tristeza”.
E assim como a ideia tradicional de cariz jurídico-político do pactum subjectionis era naturalmente assumido ou justamente dissolvido por tirania ou outras formas de desvio, começo a admitir que o pactum que me liga à ideia nacional se dissolve gradualmente por tirânica degradação dos pressupostos da adesão nacionalista. A ideia tradicional de “portugalidade” é cada vez mais distante da realidade social e cultural que se encerra nas fronteiras políticas, limitando ou cerceando a possibilidade de persistirem ou de se desenvolverem os tradicionais sentimentos de identificação e adesão próprios dos crentes daquela. Com a propensão nacional para a simplificação chineleira, essa nova realidade continuará a suscitar identificações e adesões, mas não, decerto, as minhas. Portugal e os Portugueses galopam felizes em direcção a uma nova identidade fandanga, onde, com as anónimas menos-valias comuns ao triste Ocidente dos nossos dias, se amalgam específicos valores nacionais, do pior do que sempre em nós houve mas que agora perdemos a vergonha de exibir porque fomos abençoados com o dom de relativizar os tais “sentimentos passivos” de que falava Almada --- “a resignação, o fatalismo, a indolência, o medo do perigo, o servilismo, a timidez” --- cumulando no resultado já diagnosticado (e quanto nos custou ouvi-lo da boca do galego Camilo José Cela): tristes, invejosos, sem grandeza porque sem auto-estima.
Como não tenho feitio nem gosto para ficar sentado a sonhar com o 5º Império com Tróia a arder à volta, arrogo-me o direito de ponderar se também vale a pena considerar essa vertente poderosa do nacionalismo que é o apego à tradição. E pergunto-me se ainda haveremos de regressar aos tempos heróicos do medioevo em que nos destroços barbarizados do Império Romano a tradição foi piedosamente conservada em ilhas de cultura, geograficamente distantes mas coesas numa noção transcendental do destino humano, alheios a vínculos nacionais (se é que havia nações) e sobreviventes na insistência da possibilidade de ver o mundo, como Dante, sub specie civilitatis.
Acreditamos em coisas, em princípios, em valores. Acreditar, é a expressão do sistema dinâmico de adesões ou de crenças que constitui a raiz da nossa racionalidade, decorrendo desse sistema de crenças a miríade de vínculos sobre os quais assenta toda a nossa a vida e a nossa Weltanschauung. Abundância ou complexidade de vínculos nunca foi indicativo de felicidade ou paz de espírito. Recordo que a catequética tradicional nos prevenia justa e continuadamente da má selecção, e sobretudo, do excesso de respeitos. E tanto assim é, que o despojamento próprio das asceses religiosas ou de correntes puramente filosóficas como o estoicismo comungam de um mesmo desiderato prático que é o alívio do eu, uns como condição de perfeita e transcendente comunhão na Divindade, outros como utilitária garantia da felicidade no vale de lágrimas do mundo dos homens. A natural ou despretenciosa sabedoria dos simples, dos grandes e dos justos é precisamente marcada pelo despojamento e pelo reducionismo das crenças às essências.
É a crença “nacionalista” uma essência? Corre na confraria um debate intenso sobre “nacionalismo”, não tanto um debate segundo os cânones tradicionais onde a ideia, como unidade, sustenta a polémica, mas um debate que ainda se vai esvaindo na definição conceptual ou na definição dos planos onde (para cada um) assenta a “logística das ideias”.
Penso que me calha também dizer de meu direito. Colho aqui e ali considerações que na generalidade perfilho; que “as nações pertencem realmente ao domínio da construções humanas, das realizações do homem na história, não constituindo factos da natureza, como parecem pensar alguns tolos” (Sexo dos Anjos), um “bom profiláctico contra as dissoluções delirantes que tantas vezes se acoitam sob a bandeira internacionalista”, e, portanto, um “residual inócuo” quando contrastado com o plano superior da ordem moral (O Jansenista), um plano de exercício de cidadania (assim, cidadania nacional) definido por moldes consagrados na tradição, compatível e, em nosso entender, não miscível com o que alguém definiu como a cidadania do género humano, maxime se tivermos bem clara a escala de valores da lição evangélica e das laborações tomísticas e neo-escolásticas (mihi).
Como Português em Portugal, entendo o problema do nacionalismo estreitamente vinculado à questão da tradição. O nacionalismo subsume-se e ganha sentido na viabilidade da tradição específica de uma nação; o nacionalismo é, assim, simultaneamente, a manifestação de fé na existência da tradição, o grito de unidade lançado ao exterior, o auto-sustento anímico de aceitação de uma construída unidade política.
***
Há tempos, em agradável debate com o confrade Corcunda, falou-se de tradição, em sede de Direito e de Justiça. Retenho só o que na altura contrapunha, i.e. que a “tradição” correctamente destacada e invocada, se constitui como a unidade, manifestação palpável do ajuste continuado das formas aos princípios, e, portanto, da legitimidade das mesmas formas, sejam elas um sistema normativo ou um quadro institucional.
A tradição, é traditio no seu sentido exacto, uma dinâmica que se verifica enquanto ao longo dos séculos houver mãos naturalmente dispostas a formar cadeias por onde um património, erguido, flua naturalmente ao longo desses mesmos séculos. A falta de expontaneidade de oferta dessas mãos, mata a tradição e retira-lhe a legitimidade: a tradição deixa então de ser o património que, vivificando, flui serenamente, passando a exibir-se como uma mera carcaça que vamos atirando mecanicamente para a frente.
Constato com dor que Portugal é hoje um país e uma nação com cada vez menos tradição. O fluxo vital dos valores que me são queridos vem de há muito a ser corroído, e até interrompido, pelo iluminismo burguês, pelo positivismo, pelo marxismo, pelo simples laicismo ou pelo demoliberalismo, com o efeito catalizador das rupturas revolucionárias a que a nossa débil estrutura sócio-cultural tem sido sujeita nos últimos dois séculos e meio.
Ora, não acredito sinceramente nem me obrigo à sujeição a uma ideia nacional num país onde a legitimidade dos valores em que acredito deixou ou está em vias de deixar de existir porque deixaram de fluir ou brotar do que alguém definiu como a “consciência nacional portuguesa”, fazendo-se depender a sua persistência de um esforço de imposição, persuasão ou proselitismo doutrinário, por simpáticos que me sejam os seus fautores.
Valerá a pena combater o bom combate, na esperança de melhores dias? É um facto que durante anos e anos, regime após regime, guerra após guerra, paz após paz, a relativa unidade estruturante dos Portugueses permitiu na quadrícula geográfica a laboração e a sobrevivência de uma ideia de “portugalidade” com os correspondentes sentimentos de identificação e adesão, e até de “cumplicidade” entre portugueses. Há uma frondosa corrente de pensamento e de doutrina que assentou a sua vitalidade, a sua sedução, e até, a sua poesia, no dado adquirido da consistência étnica dos velhos habitantes do torrão nacional, nas marcas deixadas pelo contacto e pela luta continuada face ao meio onde secularmente se fixou, na memória da experiência histórica comum, enfim, na maneira de se ser face à vida e aos outros, que é no fundo o resultado depurado da interacção dos anteriores. Registo Teixeira de Pascoais (na Arte de Ser Português), ou Jorge Dias (Estudos do Carácter Nacional Português), ou Cunha Leão (O Enigma Português) como autores dos que mais aguda e realisticamente desceram às profundezas do ethos nacional. Lamento muito deixar de parte as variações de autores como António Quadros ou Agostinho da Silva, cujo simpático delírio causou estragos ainda difíceis de avaliar em termos da acreditação nos meios da intelectualidade tradicionalista de mitos universalistas e interculturais do género do 5º Império da Portugalidade, do “abraço armilar” ou da lusofonia mística. A essa escatologia (no sentido teológico, precise-se) estamos a vê-la todas os dias no Rossio, no Martim Moniz, no Catujal, na Linha de Sintra, no sucesso da CPLP ou na simpatia com que diariamente nos brindam os “irmãos” africanos ou brasileiros…
Durante a maior parte da nossa História a portugalidade, a tradição e as formas de adesão “nacionalista” que ela suscitava, assentaram em expressões particulares e culturalmente distintas de espiritualidade religiosa, de estética, de adopção de determinadas instituições do Poder, de sentimento histórico, de sentimentos de pertença, de formas de relacionamento social interno e de formas de relacionamento no exterior, de sentido crítico, de sensatez e até de sentido de humor.
A quebra demográfica, a globalização acelerada, a introdução em progressão geométrica do elemento alienígena no tecido nacional, a suburbanização das populações e a decadência do espírito crítico são outros tantes golpes a corroer a viabilidade dessa tradição, e, em simultâneo, a criar os fundamentos de um mundo novo. E chegará o dia em que seremos confrontados --- cada vez mais o somos --- com o facto de que o sentirmo-nos portugueses não se traduz num viver digno numa determinada comunidade de cultura, história e etnia, mas numa vil sujeição aos tiques e aos ritmos de uma promiscuidade de vulgaridades, de folclores e de tribus, que nem sequer é ou já será a portuguesíssima “apagada e vil tristeza”.
E assim como a ideia tradicional de cariz jurídico-político do pactum subjectionis era naturalmente assumido ou justamente dissolvido por tirania ou outras formas de desvio, começo a admitir que o pactum que me liga à ideia nacional se dissolve gradualmente por tirânica degradação dos pressupostos da adesão nacionalista. A ideia tradicional de “portugalidade” é cada vez mais distante da realidade social e cultural que se encerra nas fronteiras políticas, limitando ou cerceando a possibilidade de persistirem ou de se desenvolverem os tradicionais sentimentos de identificação e adesão próprios dos crentes daquela. Com a propensão nacional para a simplificação chineleira, essa nova realidade continuará a suscitar identificações e adesões, mas não, decerto, as minhas. Portugal e os Portugueses galopam felizes em direcção a uma nova identidade fandanga, onde, com as anónimas menos-valias comuns ao triste Ocidente dos nossos dias, se amalgam específicos valores nacionais, do pior do que sempre em nós houve mas que agora perdemos a vergonha de exibir porque fomos abençoados com o dom de relativizar os tais “sentimentos passivos” de que falava Almada --- “a resignação, o fatalismo, a indolência, o medo do perigo, o servilismo, a timidez” --- cumulando no resultado já diagnosticado (e quanto nos custou ouvi-lo da boca do galego Camilo José Cela): tristes, invejosos, sem grandeza porque sem auto-estima.
Como não tenho feitio nem gosto para ficar sentado a sonhar com o 5º Império com Tróia a arder à volta, arrogo-me o direito de ponderar se também vale a pena considerar essa vertente poderosa do nacionalismo que é o apego à tradição. E pergunto-me se ainda haveremos de regressar aos tempos heróicos do medioevo em que nos destroços barbarizados do Império Romano a tradição foi piedosamente conservada em ilhas de cultura, geograficamente distantes mas coesas numa noção transcendental do destino humano, alheios a vínculos nacionais (se é que havia nações) e sobreviventes na insistência da possibilidade de ver o mundo, como Dante, sub specie civilitatis.
<< Home