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Je Maintiendrai

"... Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche". Pol Vandromme

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Friday, September 29, 2006






YUSSUPOV E OS CIGARROS DO MEU AVÔ

Toda a vida conheci o meu Avô a fumar, e a fumar sempre os mesmos cigarros: tabaco leve envolvido num papel escuro com uma boquilha de folha dourada. O meu Avô chamava-lhes “os cigarros do Yussupov”. Chegavam-lhe de Londres em cigarreiras de cartão ou em latinhas cilíndricas com um fascinante rótulo preto onde uma águia imperial russa brilhava a oiro sob a marca mágica - Sobranie Black Russian. Ambicionados tesouros que, depois de esvaziados, passavam à minha mão para guardar os berlindes que substituíam nas latas o requintado tabaco do meu Avô; imaginava eu lá que misteriosas propriedades poderiam ganhar os meus preciosos abafadores, belgas e olhos de boi postos sob a tutela veneranda da águia bifronte dos Romanoff!
Meu Avô conhecera, creio que em Londres e ignoro em que circunstâncias, o Príncipe Felix Felixovich Yussupov – ou, como então se escrevia, Youssupoff – o mais prestigiado dos carrascos do starets Rasputine naquela noite fatal de Dezembro de 1916. Depois, ao longo dos anos, mantivera em casa do meu Tio Pierre um contacto ocasional com o velho senhor, um bel ténébreux que em Paris sobrevivia razoavelmente à custa da venda dos Rembrandt com que conseguira escapar-se durante os acidentes da Revolução de Outubro. Já não sei contar bem a história, mas ao que parece, um certo dia, pelo preço de uma cigarreira de prata carregada de Black Russian, Yussupov convenceu o meu Avô a ceder-lhe uma garrafa de excelente Madeira (a corte de S.Petersburgo fora a maior consumidora mundial de Madeira). Para o meu então jovem Avô foi um coup de foudre tabagístico que nunca esmoreceu ao longo da vida, mesmo durante a terrível crise provocada um dia por Mademoiselle Anne.
Algures durante a Guerra, viúva e regressada de Paris, a minha Tia trouxera consigo uma dama de companhia, essa M.lle Anne, uma “russe blanche”, filha de um qualquer adc do Tsar que meu tio Pierre conhecera e ajudara. Muitos anos depois era eu frequentador assíduo do bastião francófono que era a grande casa de minha Tia, à Av. Duque de Ávila, e estou a ver com os olhos dos meus 10 ou 12 anos a imagem de M.lle Anne. Era já uma velha senhora com um rosto de uma palidez assombrosa enquadrado por um cabelo alvíssimo apanhado em diáfana rede, a boca traçada num risco fino e um olhar cansado. Exprimia-se em francês num tom arrastado que me soava estranho e deslizava fantasmagoricamente pelos longos corredores silenciosos da casa de minha tia. Passavam as duas damas a tarde a fumar, a ler e, cada uma por seu lado, a deitar as cartas de infindáveis paciências regadas a chá preto, a recordar os dias de Paris, a elogiar Salazar, e, ocasionalmente, a ansiar pelas reprises da Balalaika onde Nelson Eddy e Ilona Massey consagravam na tela o drama glorioso da Rússia Branca no exílio.
Aos sábados, vindo da velha pastelaria Colombo, meu Avô passava pela casa da irmã, minha Tia, a falar de tudo e a falar do nada que era a conversa daqueles dois irmãos sozinhos numa família à beira de se acabar. Numa dessas tardes, meu Avô caíra na asneira de contar a historieta dos cigarros e da botelha de Madeira a M.lle Anne. Ora, ao que parece e sabe-se lá porquê, Yussupov não tinha uma cotação elevada no carnet de exílio de M.lle Anne, e a invocação do fantasma provocou na velha dama uma inusitadíssima metralha de impropérios em francês antigo, deixando os meus familiares bouche bée e razoavelmente pulverizada a imagem dos costumes, da inteligência e do patriotismo do pobre Príncipe. A bem dizer, vindo da beatitude de uma mesa na Colombo (onde religiosamente devorava um prato inteiro de éclairs de chocolate que rematava com a sessão de fumo em casa da irmã) ao meu Avô bem lhe importavam os mexericos da corte desaparecida de Tzarskoye-Selo; o pior é que M.lle Anne, despertado não sei que mau génio e à falta de melhor, passou a materializar e a multiplicar o fantasma de Félix Felixovitch por cada um dos cigarros do meu Avô e consequentemente – apesar de consumidora inveterada de Gitanes -- a embirrar com cada uma dessas sessões de fumo de Black Russian com que meu Avô envolvia os seus circunlóquios com a irmã. Declarou-se asmática e alérgica, tísica e oftalmologicamente perturbada, e, ante a indiferença calculadamente bolchevista do meu Avô e o silêncio teosófico da minha Tia, retirava-se invariavelmente pelo corredor gorgolejando “un menteur, un traitre, un rastaquouère…”, e porventura ainda outros mimos presume-se que atirados a zunir por cima da cabeça do meu Avô à memória do pobre Félix Felixovich Yussupov.
Já morreram todos. No outro dia, em Londres, apanhei-me a olhar para dentro de uma montra onde, em socalcos de tabacos variados, negrejava uma caixa de Black Russian com a tal águia dourada do Tsar. Parece que a coisa nada tem a ver com a antiga, é caríssima e vale pouco, produzida quase exclusivamente para consumo de uma clientela de parvenus moscovitas pela casa Gallaher. Contudo, lembrou-me os meus berlindes, a casa da Duque de Ávila, o meu Avô, e, mais do que isso, veio-me à memória uma voz nasalada a murmurar-me divertido, “lá está o estupor da russa a pegar com os cigarros do Youssupoff!

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