Do uso do palavrão
Notas sobre a decadência da consciência clássica da obscenidade.
Os Confrades Jansenista e de Combustões levantaram recentemente a questão do “palavrão” e do correntio uso da obscenidade que afecta a blogosfera, com um efeito que chamaríamos de cloaquismo crescente, impúdico e injustificado. Faz parte da mediocratização das gentes e do abaixamento cultural, manifesto sobretudo na perda da noção do equilíbrio e da subtil utilização da obscenidade na linguagem e na literatura. Consolemo-nos que Espanhóis (terríveis nisso os Espanhóis, geneticamente soezes) e os Italianos estão muito pior do que nós na institucionalização do cultivo e do exibicionismo da grosseria.
Há sobretudo uma decadência da consciência clássica do lugar ou da utilização da obscenidade numa cultura que celebrou a obscenidade como um aditivo elaborado das imagens literárias sobre o homem e o viver natural do homem. Já o saudoso Virgílio Ferreira, grande latinista e literato, prevenia que à aljava onde o português conserva a frondosa série de obscenidades que até há pouco tempo ainda utilizava com alguma graça e sentido de oportunidade, a herdáramos directamente dos nossos ancestrais greco-romanos. De facto, o percurso do mundo complexo da obscenidade neo-latina impõe que se remonte à Antiguidade Clássica e a familiarização com os topoi respeitantes às naturalia loca ou natura, a eufemística designação das partes sexuais, que qualquer um familiar com a linguagem do mundo rústico associará imediatamente às naturas. Um universo feliniano de obscenidades apotropaicas proferidas para conjurar o mau-olhado, que tinham o seu momento alto nos triunfos onde, aliás, o triumphator ostentava uma bulla fálica, ou pendurava no carro um falo consonatemente triunfante como medicus invidiae. São também os versos obscenos – fescennines cantados em cerimónias nupciais, ou ainda as não menos obscenas metáforas agrícolas, náuticas, botânicas, militares semeadas na oratória, elegias, epigramas, sátiras, comédias, de que nos dá hoje útil e saboroso testemunho um vastíssimo corpus documental que se espraia nas colecções de inscrições pompeianas, no Corpus Priapeorum, na Priapea, nos Graffiti del Palatino, e no labor eruditíssimo de mestres como Adams, Grassmann, Krenkel, Mariotti, Pierrugues, Herter…
É o mundo priápico onde eventualmente tropeçamos na metáforica virga, tão expressiva em Cassiodoro, ou diminutivamente utilizada na Lex Salica como uirgula, o palus com que Horácio alude ao falo de Príapo, ou ainda o bem mais familiar e colorido caraculum, ocasionalmente alçado à imagem majestática de brachia macra, hoje lamentavelmente perdida nas línguas vivas, ou na menos flamante cauda que só os Franceses conservam com pouco brilho na vulgaríssima queue. Organicamente associado ao caraculum, depara-se-nos fatalmente o consabido coleus (testículo(s)) – que Cícero e Séneca não desdenharam semear pelos seus escritos e sobre o qual Pompónio construiu a saborosa e laudatoriamente masculina variação coleatus – com viçosa descendência nas línguas neo-latinas em termos como couille, couillon, coglione, etc. etc. É oportuno notar que o campo suscitou uma infinita série de variações e metáforas dentre as quais não resistimos a notar fiscus (com o sentido clássico de porte monnaie e que recorda a ainda hoje popularuncha e marota imagem da "bolsinha de trocos") e que Isidoro de Sevilha não desdenhou definir nas suas Etym. como “fiscus -- est pellis in qua testiculi sunt”. Para concluir, refiramos ainda as alusões a anexas pilosidades – não os vulgares ornamentos ou complementos pilosos como capillus ou pillus – mas o mais localizado pectiniculus, com óbvia persistência no espanhol e no português.
Passemos agora às loca muliebria, onde a análise dos clássicos nos prova a indiscutível predominância do cunnus como a mais óbvia obscenidade referente à genitalia feminina, transversalmente semeada das paredes de Pompeia ou Herculanum à oratória de Cícero, explicativa da fortuna de imagens fesceninas como o cunnum lingere de Marcial, de interjeições outrora correntes como cunne superbe! ou o mais prosaico cantar de Catulo: "secretusque tua, cunne lauaris aqua…”. Nesta sede não nos devemos abster de aludir ainda à terminologia referente ao acto sexual básico, de que é paradigma terminológico futuo, com recurso corrente e presente em larga cópia de clássicos que vão de Marcial a Cícero e que muitas vezes se refina no termo fodio relativo ao preciso papel masculino no acto sexual. Nesse preciso contexto devem ser entendidos os numerosos graffiti dos lupanares pompeianos do género “Félix bene futuis”, “Phoebus bónus futor”, “fututa sum hic”, et. all. Por falta de tempo, dispensamo-nos de aprofundar a matéria da natureza de eufemismos elípticos de patente conotação sexual como ire ad, ou o rico significado de lingo ou lingere, associado a outros termos latinos como lingua ou lambo sugestivos de variadíssimos actos de excitação sexual.
Embora comum aos dois géneros, é ainda no âmbito dos loca muliebra que o clássico assento traseiro suscita as maiores variações e as mais pitorescas metáforas. A vox propria é o vulgaríssimo e sonoro culus (sujeito a variações de acentuado pendor qualitativo como as do Corpus Priapeorum -- culibonia (ea quae bonum culum habet) ou o mais dessueto podax, com um significado directamente anal (e que colhe associar a outras realidades próximas como o conhecidíssimo e volátil pedum tão ao gosto de Séneca, Juvenal, Marcial, Catulo), e que, recordando-nos plebeísmos hoje correntes como peida ou peidola, nos permite com segurança repudiar a afirmação do erudito Adams de que podax não tem reminiscências no linguarejar neo-latino dos nossos dias.
Para não me alongar mais, não irei discorrer em profundidade sobre o capítulo residual das funções orgânicas ou dos actos corporais a que respeitam termos coloridos e familiares como meiare, ou no plano, não dos líquidos mas dos sólidos, caco e cacator, ou a bem conhecida merda (não exclusivamente humana, dada a recorrência de termos mais precisos como merdam leporinam, merda caprina ou merdam bubulam), e no associado acto de ventum facere, as ventositas, os crepitus ou os strepitus, certamente mais familiares na versão remotamente indo-europeia do pedum, já cantado por Marcial, “intestinum enim mouit ut pedere non cesset…”.
E por falar nisto, dedico respeitosamente este post ao Prof. Mariano Gago, Ministro da Ciência e do Ensino Superior, com a esperança que reconsidere a utilidade da reintrodução dos estudos clássicos nos curricula universitários..
Notas sobre a decadência da consciência clássica da obscenidade.
Os Confrades Jansenista e de Combustões levantaram recentemente a questão do “palavrão” e do correntio uso da obscenidade que afecta a blogosfera, com um efeito que chamaríamos de cloaquismo crescente, impúdico e injustificado. Faz parte da mediocratização das gentes e do abaixamento cultural, manifesto sobretudo na perda da noção do equilíbrio e da subtil utilização da obscenidade na linguagem e na literatura. Consolemo-nos que Espanhóis (terríveis nisso os Espanhóis, geneticamente soezes) e os Italianos estão muito pior do que nós na institucionalização do cultivo e do exibicionismo da grosseria.
Há sobretudo uma decadência da consciência clássica do lugar ou da utilização da obscenidade numa cultura que celebrou a obscenidade como um aditivo elaborado das imagens literárias sobre o homem e o viver natural do homem. Já o saudoso Virgílio Ferreira, grande latinista e literato, prevenia que à aljava onde o português conserva a frondosa série de obscenidades que até há pouco tempo ainda utilizava com alguma graça e sentido de oportunidade, a herdáramos directamente dos nossos ancestrais greco-romanos. De facto, o percurso do mundo complexo da obscenidade neo-latina impõe que se remonte à Antiguidade Clássica e a familiarização com os topoi respeitantes às naturalia loca ou natura, a eufemística designação das partes sexuais, que qualquer um familiar com a linguagem do mundo rústico associará imediatamente às naturas. Um universo feliniano de obscenidades apotropaicas proferidas para conjurar o mau-olhado, que tinham o seu momento alto nos triunfos onde, aliás, o triumphator ostentava uma bulla fálica, ou pendurava no carro um falo consonatemente triunfante como medicus invidiae. São também os versos obscenos – fescennines cantados em cerimónias nupciais, ou ainda as não menos obscenas metáforas agrícolas, náuticas, botânicas, militares semeadas na oratória, elegias, epigramas, sátiras, comédias, de que nos dá hoje útil e saboroso testemunho um vastíssimo corpus documental que se espraia nas colecções de inscrições pompeianas, no Corpus Priapeorum, na Priapea, nos Graffiti del Palatino, e no labor eruditíssimo de mestres como Adams, Grassmann, Krenkel, Mariotti, Pierrugues, Herter…
É o mundo priápico onde eventualmente tropeçamos na metáforica virga, tão expressiva em Cassiodoro, ou diminutivamente utilizada na Lex Salica como uirgula, o palus com que Horácio alude ao falo de Príapo, ou ainda o bem mais familiar e colorido caraculum, ocasionalmente alçado à imagem majestática de brachia macra, hoje lamentavelmente perdida nas línguas vivas, ou na menos flamante cauda que só os Franceses conservam com pouco brilho na vulgaríssima queue. Organicamente associado ao caraculum, depara-se-nos fatalmente o consabido coleus (testículo(s)) – que Cícero e Séneca não desdenharam semear pelos seus escritos e sobre o qual Pompónio construiu a saborosa e laudatoriamente masculina variação coleatus – com viçosa descendência nas línguas neo-latinas em termos como couille, couillon, coglione, etc. etc. É oportuno notar que o campo suscitou uma infinita série de variações e metáforas dentre as quais não resistimos a notar fiscus (com o sentido clássico de porte monnaie e que recorda a ainda hoje popularuncha e marota imagem da "bolsinha de trocos") e que Isidoro de Sevilha não desdenhou definir nas suas Etym. como “fiscus -- est pellis in qua testiculi sunt”. Para concluir, refiramos ainda as alusões a anexas pilosidades – não os vulgares ornamentos ou complementos pilosos como capillus ou pillus – mas o mais localizado pectiniculus, com óbvia persistência no espanhol e no português.
Passemos agora às loca muliebria, onde a análise dos clássicos nos prova a indiscutível predominância do cunnus como a mais óbvia obscenidade referente à genitalia feminina, transversalmente semeada das paredes de Pompeia ou Herculanum à oratória de Cícero, explicativa da fortuna de imagens fesceninas como o cunnum lingere de Marcial, de interjeições outrora correntes como cunne superbe! ou o mais prosaico cantar de Catulo: "secretusque tua, cunne lauaris aqua…”. Nesta sede não nos devemos abster de aludir ainda à terminologia referente ao acto sexual básico, de que é paradigma terminológico futuo, com recurso corrente e presente em larga cópia de clássicos que vão de Marcial a Cícero e que muitas vezes se refina no termo fodio relativo ao preciso papel masculino no acto sexual. Nesse preciso contexto devem ser entendidos os numerosos graffiti dos lupanares pompeianos do género “Félix bene futuis”, “Phoebus bónus futor”, “fututa sum hic”, et. all. Por falta de tempo, dispensamo-nos de aprofundar a matéria da natureza de eufemismos elípticos de patente conotação sexual como ire ad, ou o rico significado de lingo ou lingere, associado a outros termos latinos como lingua ou lambo sugestivos de variadíssimos actos de excitação sexual.
Embora comum aos dois géneros, é ainda no âmbito dos loca muliebra que o clássico assento traseiro suscita as maiores variações e as mais pitorescas metáforas. A vox propria é o vulgaríssimo e sonoro culus (sujeito a variações de acentuado pendor qualitativo como as do Corpus Priapeorum -- culibonia (ea quae bonum culum habet) ou o mais dessueto podax, com um significado directamente anal (e que colhe associar a outras realidades próximas como o conhecidíssimo e volátil pedum tão ao gosto de Séneca, Juvenal, Marcial, Catulo), e que, recordando-nos plebeísmos hoje correntes como peida ou peidola, nos permite com segurança repudiar a afirmação do erudito Adams de que podax não tem reminiscências no linguarejar neo-latino dos nossos dias.
Para não me alongar mais, não irei discorrer em profundidade sobre o capítulo residual das funções orgânicas ou dos actos corporais a que respeitam termos coloridos e familiares como meiare, ou no plano, não dos líquidos mas dos sólidos, caco e cacator, ou a bem conhecida merda (não exclusivamente humana, dada a recorrência de termos mais precisos como merdam leporinam, merda caprina ou merdam bubulam), e no associado acto de ventum facere, as ventositas, os crepitus ou os strepitus, certamente mais familiares na versão remotamente indo-europeia do pedum, já cantado por Marcial, “intestinum enim mouit ut pedere non cesset…”.
E por falar nisto, dedico respeitosamente este post ao Prof. Mariano Gago, Ministro da Ciência e do Ensino Superior, com a esperança que reconsidere a utilidade da reintrodução dos estudos clássicos nos curricula universitários..
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