O ALBATROZ DE BAUDELAIRE.
Ainda o Sebastianismo
O Prof. J.A.Maltez escreveu hoje um post, que reclamo ser-me dirigido, a propósito de um outro, meu, que também não pecava por esconder a origem do mote. Assumo algumas das frechadas que atira, não todas, sobretudo a acusação genérica de “pendurado na dogmática das seitas e dos catecismos”, que, não sabendo bem que tem a ver com o que escrevi, me dispensa de enfiar o garruço.
No fim de contas, no essencial estamos de acordo (o que é um auto-elogio à custa de um discípulo de Martim de Albuquerque). Ambos tratámos “do que de mais universal há no pensamento político português, o tal sebastianismo que já existia antes de D. Sebastião e que também podemos encontrar noutras culturas, com outros nomes, as habituais rendas de bilros da racionalidade finalística, como se fosse possível aceder-se à racionalidade axiológica sem os laicíssimos mistérios das religiões seculares”.
No fim de contas, no essencial estamos de acordo (o que é um auto-elogio à custa de um discípulo de Martim de Albuquerque). Ambos tratámos “do que de mais universal há no pensamento político português, o tal sebastianismo que já existia antes de D. Sebastião e que também podemos encontrar noutras culturas, com outros nomes, as habituais rendas de bilros da racionalidade finalística, como se fosse possível aceder-se à racionalidade axiológica sem os laicíssimos mistérios das religiões seculares”.
Poderíamos, de facto, escrever tomos sobre essa eleição de formas, de mitos e de ideais tributários de um quadro mental formado sob o impacto de uma cultura que extravasa os limites estreitos do País. Porque, lucubrações proféticas estribadas numa visão retrospectiva de glórias passadas, podendo adquirir a forma particular de um sebastianismo, sempre as houve. Como bem nota JAM, são o reflexo de uma fenomenologia messiânica universal. Mas o que não nota e o que eu quis notar, é que ao escrever-se e ao especular-se tão abundantemente sobre messianismos e sebastianismos e quejandos, se perdeu e perde de vista um marco referencial importante: o da função essencialmente congregadora, legitimadora e propagandística que o mito desempenhou na história das ideias políticas em Portugal, e que nada tem de especificamente português precisamente porque igual operacionalidade assumiu em Espanha (vide Garcia Pelayo e Maravall), ou em França, ou em Inglaterra (Frances Yates) ou sob os germânicos Hohenstaufen (Marc Bloch). E isto para não falarmos já, da mística romana da perenidade da duração e do espaço do antigo Império, construída sobre a glosa dos célebres versos de Virgílio “imperium sine fine dedit…”
Também o reparo de JAM não contradiz outro aspecto da tal fenomenologia que quis sublinhar, e que se prende ao pendor depressivo e esterilizante que lhe é peculiar. Que não é novo. Sempre gostei muito daquilo que 1624 escrevia melancolicamente Martim Afonso de Miranda no seu Tempo de Agora: “…já passou o tempo das gloriosas vitórias alcançadas no Oriente, as conquistas dos nossos Portugueses compradas com o sangue de suas veias, já não há quinas no Céu nem Cruz, já não se vê Santiago, nem a Virgem Nossa Senhora acompanhada...”.
E, até aos dias de hoje, poderíamos reunir um substancioso corpus d’outras expressões similares ou mais estremadas. Todas rendidas à sedução do mistério, ao sabor do faisandé das coisas decaídas, algumas à grandeza do elogio da loucura e até ao charme desse enigma (que, confesso, nunca decifrei) daquele “que vence, perdendo”. Enfim, coisas para o qual tão gostosamente pendemos. É o preço de sermos poéticos (por contraste, por exemplo, com os Espanhóis, que são dramáticos) uma das tais pechas que, com outras, inspiraram ao velho Miguel de Unamuno a célebre asserção de sermos “um povo de suicidas”.
Daqui que considere ainda incólume o talvez mais relevante período de tudo quanto escrevi no referido post; a chamada de atenção para a “incapacidade portuguesa para impor no raciocínio político o crivo da crítica aplicável à tendência poética. Na melhor das hipóteses quando é poética, e o poético não é fachada de uma alucinação perniciosa que só em Portugal tem foros de legitimidade para impor uma estética e uma praxis cuja interferência se revela nos desastres do dia a dia.”
Também o reparo de JAM não contradiz outro aspecto da tal fenomenologia que quis sublinhar, e que se prende ao pendor depressivo e esterilizante que lhe é peculiar. Que não é novo. Sempre gostei muito daquilo que 1624 escrevia melancolicamente Martim Afonso de Miranda no seu Tempo de Agora: “…já passou o tempo das gloriosas vitórias alcançadas no Oriente, as conquistas dos nossos Portugueses compradas com o sangue de suas veias, já não há quinas no Céu nem Cruz, já não se vê Santiago, nem a Virgem Nossa Senhora acompanhada...”.
E, até aos dias de hoje, poderíamos reunir um substancioso corpus d’outras expressões similares ou mais estremadas. Todas rendidas à sedução do mistério, ao sabor do faisandé das coisas decaídas, algumas à grandeza do elogio da loucura e até ao charme desse enigma (que, confesso, nunca decifrei) daquele “que vence, perdendo”. Enfim, coisas para o qual tão gostosamente pendemos. É o preço de sermos poéticos (por contraste, por exemplo, com os Espanhóis, que são dramáticos) uma das tais pechas que, com outras, inspiraram ao velho Miguel de Unamuno a célebre asserção de sermos “um povo de suicidas”.
Daqui que considere ainda incólume o talvez mais relevante período de tudo quanto escrevi no referido post; a chamada de atenção para a “incapacidade portuguesa para impor no raciocínio político o crivo da crítica aplicável à tendência poética. Na melhor das hipóteses quando é poética, e o poético não é fachada de uma alucinação perniciosa que só em Portugal tem foros de legitimidade para impor uma estética e uma praxis cuja interferência se revela nos desastres do dia a dia.”
Escreveu um dia Ernst Kantorowicz, na introdução ao seu formoso e famoso estudo de teologia política medieval, The King's two bodies, (trad. mihi), que “o misticismo ao ser transferido da cálida luz do mito e da ficção para a fria e inquisitiva luz dos factos e da razão, perde geralmente boa parte do seu poder persuasivo. A sua linguagem, a menos que escutada dentro do seu próprio círculo mágico ou místico, parecerá amiúde pobre e até um pouco ridícula, e as suas metáforas mais misteriosas ou imagens mais brilhantes podem, uma vez desprovidas das suas asas iridiscentes, recordar a imagem patética e comovedora do Albatroz de Baudelaire. A mística política, em particular, está mais exposta ao perigo de perder o seu poder de encantamento ou esvaziar-se de sentido quando subtraída ao seu ambiente natural, ao seu tempo e ao seu espaço”.
Custa admiti-lo, no que a nós nos toca. Pois custa, tal é ganga com que se incrustou na nossa cultura dos últimos 80 anos. Mas as coisas são como são, e não adianta pactuar com o delírio, a poesia e o exagero, incrustrando com carácter de essencialidade na tradição o que lá nunca esteve com mais do que uma função meramente instrumental. Não seria sério.
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