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Je Maintiendrai

"... Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche". Pol Vandromme

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Wednesday, December 27, 2006







DA MINHA GAVETA.
JÚLIO DE CASTILHO (1840-1919) E A LISBOA ANTIGA

Lisboeta rendido e impeninente, puxando o lustre ao galão prezado de filho, neto e bisneto e por aí adiante, de alfacinha, gabo-me de conhecer muito bem a minha Cidade; palmilho-a, vejo-a, revejo-a e até descubro-a, e não poucas vezes pergunto-me por onde andarão os olisipógrafos, não os curiosos e os interessados nas res olissiponense, mas os sucessores daquela casta de gente de outrora, erudita, sabedora e dedicada à cidade, umas vezes mascarada sob o rótulo antigo de arqueólogos, mas com créditos firmados em obra escrita que ainda hoje lemos com agrado e proveito. E no entanto não creio que faltem os devotados; conheci e conheço vários, alguns com responsabilidades na CML, de mérito discreto, quase clandestino, sabe Deus com que amargura a assistirem impotentes na primeira linha às barbaridades que diariamente aqui se cometem. Ou seja, não duvido dos méritos dos técnicos do Gabinete de Olisipografia, do Museu da Cidade, do Arquivo (sobretudo do fotográfico!) e até de uma nova geração de bloguistas olissiponenses. Falo, porém, dos Castilhos, dos Pastores de Macedo, dos Vieiras da Silva, dos Matos Sequeira, dos Norbertos de Araújo… A boa livraria da CML ao Saldanha tem coisas interessantes, algumas antigas e meritoriamente reeditadas, mas confesso respeitosamente que me ultrapassa a catadupa de literatura de estudos sociológicos, arquitectónicos e paisagísticos em que parece esgotar-se a ciência de Lisboa. Autres temps autres moeurs.
Eu sou um fã de Júlio de Castilho, e o feliz possuidor, por munificência paterna, de algumas das obras do filho do vate, especialmente dos doze volumes da Lisboa Antiga (Bairros Orientais). Que de graça, de erudição, de finura nessa obra que Luís Pastor de Macedo descreveu como “não só a obra dum arqueólogo e dum erudito, profundo conhecedor de bibliotecas e arquivos, mas também a dum artista, sensível como poucos ao espírito do tempo que passou, dum poeta que em cada pedra antiga encontra motivos permanentes de evocação e beleza…”. A minha edição é a 2ª, a de 1934, (baseada na rara 1º, das últimas décadas de XIX e revista até 1915 pelo próprio Castilho), dada à estampa pela CML por proposta desse mesmo olisipógrafo Pastor de Macedo, encarregue a outro olisipógrafo, Augusto Vieira da Silva, e por este dedicada a Joaquim Possidónio da Silva, arquitecto e também olisipógrafo. Felizes tempos de tal abundância!
Para recreio e edificação dos curiosos, e também como bandeira da causa, aqui fica hoje a recordação e umas linhas de Castilho na Lisboa Antiga, que dedico ao Confrade da Bic Laranja.

“...Como sucede com todas as cidades populosas, há em Lisboa muitas Lisboas. Não se conhecem entre si; não sabem quasi da existência umas das outras; e quando se encontram, por acaso, tratam-se de forasteiras.
Quem explicará ao risonho Buenos-Aires o que é a carrancuda Mouraria?
Quem será capaz de acender na irrequieta Alcântara as devoções do fidalgo S. Vicente?
Quem fará crer aos bastiões mauritanos do castelo de S. Jorge, que el-Rei de Portugal e do Algarve não mora na sua Alcáçova, mas sim no reguengo de Algés, num cabeço chamado da Ajuda?
Quem ensinará às ruas aldeãs de Campo de Ourique e da Cova-da-Moira, que o planeta é habitado muito para lá da Bemposta?
E quem ousará convencer a Junqueira e a Tapada, de que são já cristãos, por mercê de Deus, os moradores do Outeirinho da Amendoeira, de Benabuquel, da Judiaria, ou do Almocavar?
Podem empreender-se verdadeiras jornadas, verdadeiras viagens, de Lisboa para Lisboa. Vão de um bairro a outro estudar-se costumes novos, fisionomias novas, edificações de estilo diverso, pontos controvertidos de Historia pátria, moderna e antiga.
Neste livro que o leitor tem entre mãos explorarei Alfama, a inesgotável Alfama e suas imediações; isto é, remontarei o estudioso aos primeiros séculos da crónica portuguesa, e dir-lhe-ei:
“O que leste, vais vê-lo; o que estudaste nos livros, vais presenciá-lo nos usos, na topografia, na arquitectura. Eis-te no mais ilustre dos incunábulos da Monarquia. Vais visitar a Lisboa pré-histórica, a Lisboa fenícia, a Lisboa romana, a Lisboa sueva, a Lisboa visigoda, a Lisboa moirisca, a Lisboa cristã. Vais a um tempo devassar os paços dos Reis, as moradas dos nobres, os templos cristãos, semi-igrejas, semi-fortalezas, os albergues dos mecânicos, o bulício das Escolas-Gerais, o tráfego marcial e cidadão das ruas e praças”.
Será prometer demasiado, com o risco de não cumprir? Não é; a Lisboa antiga dá para tudo. É Lisboa já hoje uma grande cidade, e foi sempre interessantíssima. O muito que lhe querem seus filhos, e até a gente de fora, consta, e vincou rasto há séculos. Deixemos falar o burlesco personagem andaluz da Aulegrafia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, e nos seus desdéns de enjoado, até chamava a Lisboa um riconsillo de Sevilla. Demos também o devido desconto a Frei Nicolau de Oliveira, que a reputava “a maior cidade da Cristandade... e por ventura... a maior do Mundo”. Mas desculpemos o entusiasmo de Cariófilo na comédia Eufrosina que exclamava: “Ah! que não há terra no mundo como Lisboa; a conversação da gente! a arte das mulheres! a liberdade da vida! Nem creiais que se pode viver noutra parte.” E outro actor da mesma engraçada comédia, a qual e, como todas as suas congéneres, espelho de costumes, denomina-a “mãi de todos”. É o que por ventura sentia uma das almas mais admiráveis que tem honrado tronos; a Rainha D. Leonor, mulher de el-Rei D. João II, costumava dizer que o tempo que estava fora de Lisboa não vivia.
Todas estas graciosas amplificações têm sua razão de ser; são traços espontâneos de muita graça e muito afecto; completam o retrato da nossa querida Lisboa. Esse retrato é minha ambição desenhá-lo, ainda que mais não seja a lápis fugitivo. Quero ser contado no número dos que mais a amaram. Neste meu dificílimo labutar observaremos jun­tos, o leitor e eu. O que ele souber, comigo o irá recordando; o de que se não lembrar, eu lho recordarei; e dos nossos passeios sairá um livro…
Quinta de S. Bento, Olivais, Maio de 1881.”

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