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Je Maintiendrai

"... Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche". Pol Vandromme

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Friday, February 01, 2008


CARTAS DE INGLATERRA – IX (Last)

ONE WORLD IS NOT ENOUGH

A morte de Sir Edmund Hillary e um muito belo post de Miguel Castelo-Branco sobre os últimos heróis -- ou melhor, sobre a própria morte do conceito clássico de herói – recordou-me a fortuna de ter conhecido pessoalmente dois exemplares dessa espécie já rarefeita na superfície do globo: Sir Fitzroy Maclean of Dunconnel, e Charles Ralph Boxer; o primeiro desaparecido em 1996, e o segundo, alguns anos depois, em 2000. Com Maclean foi um encontro fortuito, apresentado pelo primo Archie num almoço no Reform Club onde como invited guest perorava não sei já que MP.
Archie tinha boas relações forjadas com Maclean em Westminster e depois da função ficou sentado num dos recantos do club a falar com o velho major-general, à altura MP do Conselho da Europa. Não me lembro quanto tempo, mas o suficiente para me deixar observar à vontade o lendário Sir Fitzeroy. Era um homem com as linhas viris e as marcas que anos de mando enérgico deixam estampadas num rosto. A máscara de um romano antigo, grave e lacónico, com um olhar e um rasgo de boca de indisfarçável sarcasmo ou crueldade. Pelo menos assim mo impelia a imaginar a carreira invulgar do diplomata, do militar, do linguista e do sovietólogo que percorrera a Rússia em pleno estalinismo, do escritor e viajante da Ásia Central, o historiador da Escócia e o biógrafo do Marechal Tito e de Guy Burgess.
Um dos primeiros membros da SAS, Maclean distinguiu-se nas maiores durezas da guerra do Médio Oriente, e em 1943 Churchill encarregou-o pessoalmente de se lançar em páraquedas na Juguslávia, contactar com os partisans de Tito e, nas próprias palavras de Maclean, "simply to find out who was killing the most Germans and suggest means by which we could help them to kill more." Um dos melhores retratos do poderoso carácter de Maclean é a biografia escrita pela própria mulher, Lady Veronica Fraser-Phipps -- Past Forgetting: A Memoir of Heroes, Adventure, Love and Life With Fitzroy Maclean – e à última imagem de Sir Fitzroy Maclean -- que aqui reproduzo -- via-a num livro sobre livros e bibliotecas. Vestido no tartan com as cores de uma estirpe antiga de guerreiros, rodeado de livros, de globos, de recordações de todo um mundo que ia da Escócia à Ásia Central; aí, na sua livraria de Strachur House, o general parece preparar-se para dar uma derradeira e mal-disposta voz de assalto à eternidade.
A Charles Boxer pude conhecer melhor porque era visita de família nas suas ocasionais vindas a Lisboa. O também já velho militar doublé de académico era um gentleman simpático, de fisionomia sorridente a que era alheia qualquer sombra de dureza. O tipo clássico da landed gentry inglesa que viu o mundo pelas vicissitudes da diplomacia ou da guerra. Era um charmeur e, a mais, havia nele uma qualquer ambiguidade difícil de definir e que teria a ver com uma exposição prolongada a uma Ásia que também não era a de Maclean. E curiosamente, se Maclean recebera a sua formação em Eton, Boxer tivera-a na academia militar de Sandhurst, filho de um dos caídos na batalha de Ypres. À carreira de académico, --detentor da Camões Chair of Portuguese no King’s College, e de Professor de História do Estremo Oriente na Scool of Oriental and African Studies de Londres – Boxer fizera-a anteceder por outra militar, não menos brilhante. Treinado militarmente como especialista em assuntos nipónicos, Boxer fez grande parte da sua carreira na China e no Japão como oficial da intelligence britânica. Ferido e capturado pelos Japoneses durante a queda de Hong Kong em 1940 passou o melhor de 5 anos em cativeiro. Um cativeiro lendário, onde – ao contrário dos ícones sofridos ao estilo de Merry Xmas Mr. Lawrence -- se impusera ao respeito nipónico por uma inculturação de gentleman, e que ia da especialização na historiografia asiática ou do requinte do bibliófilo, à prática então pioneira para um ocidental da arte do kendo; uma lenda heróica, ligeiramente tingida nos últimos anos.
Num artigo publicado em 2001 no The Guardian, Hywel Williams sugeria a defecção de Boxer durante o seu internamento no Japão, o resultado pervertido de um carácter complexo "under the spell of the Japanese cultural style, its combination of intellectual-aesthetic refinement and power politics." A exemplo da "the Philby-Burgess-Maclean-Blunt generation of English intellectuals who embraced Marxist communism in Soviet form", no Japão, Boxer, segundo Williams, como "other members of his social class, had found another country and another cause in the East". Tal como as acusações atiradas a Maclean de se ter especializado no assassinato frio no Médio Oriente e na Juguslávia, essas sombras sobre o carácter de Boxer (como as acusações, aliás excessivas, de ter sustentado historiograficamente alguma da black legend do império português), também se dissiparam com o correr dos anos.


Hoje, nas suas patentes ou latentes contradições, Boxer, como Maclean, impressionam sobretudo por pertencerem ainda ao mundo dos empire builders que os antecediam numa geração, a geração que encarava o mundo como um desafio pessoal respondido numa dimensão tão individualista quanto caleidoscópica, vertiginosa mas frequentemente íntima. Uma “estética de energia” que frequentemente conduzia a uma maravilhosa distorção da realidade e sustentava os dramáticos arroubos que simplisticamente e desde o mundo antigo se classificam de heroísmos. Eram os homens para quem one world is not enough - como Boxer gostava de dizer, citando o velho motto daqueles inacianos de além-mar que tanto estudou na epopeia do Japão nanban.
Numa maneira muito própria, Maclean e Boxer foram indiscutidas personificações de um tipo de herói, fascinantes homens de acção nas dimensões simultâneas do físico e do intelecto, que só o meio e, sobretudo, os cânones do velho ensino britânico conseguiram produzir em termos de aproximação a modelos bem mais antigos e bem mais clássicos de considerar o mundo e de considerar os homens. Como acontece frequentemente com ingleses da mesma linha, debalde se procurarão noutros cantos da Europa os símiles destes personagens. Se o mundo nórdico é geralmente pouco refinado, o mundo latino, já o notava Eça, não conjuga a miscibilidade das duas dimensões; o que a Espanha, a Itália e a França apresentam de semelhante é geralmente pouco convincente e raia mesmo o burlesco. Salvaguardadas as respectivas proporções, Fitzroy Maclean na Rússia ou Charles Boxer na China, como T.E.Lawrence no Oriente Médio ou R.F.Burton no Nilo e na Índia, foram, de facto, personificações paradigmáticas do que o Miguel bem definiu como uma “raça de gigantes que passou de moda”.



Hoje, escreve ele, “os tempos de glória - glória mercenária, glória para marketing - ou vão para os gladiadores dos tempos modernos (os futebolistas, os motoqueiros, os corredores da Fórmula 1) ou para os santos laicos das ditas grandes causas que se profissionalizaram na arte de condoer o coração dos telespectadores... Os Life Aid, os Médicos disto e daquilo, as ONG's, os profetas do descalabro ambiental, todos eles, são a negação dessa heroicidade que se fazia de rasgos individuais de ousadia extrema. Os horizontes fecharam-se para as grandes aventuras individuais, todo o planeta deixou de ser mistério: há estradas, telefones, internet e hotéis no Tibete e nas estepes da Ásia Central, paquetes de luxo nos mares do Ártico, turismo exótico no Pólo Sul, para ver baleias e focas, Massai de telemóvel em riste no Quénia, heliportos no coração da Amazónia, satélites e GP'S para navegadores solitários perseguidos pela CNN. O mundo perdeu a magia e o feitiço. O aventureiro que sente a tentação do risco africano já não encontra leões e outras feras, nem povos selvícolas nem antropófagos. Encontrará, sim, uma rede inextrincável de desastres causados pela mão do homem, caçadores de homens de Kalashnikov em riste, de óculos Ray-Ban e flamejantes relógios de ouro embutidos com diamantes. A geração dos gigantes e dos heróis passou à história. O mundo, sem eles, pertence ao homem-massa, ávido de glória remunerada e do reconhecimento no novo Gotha da plebe que é o Guinness. O risco pelo risco não eleva ninguém; antes rebaixa. Os "desportos radicais" são, neste particular, a maior abjecção do heroísmo, pois o herói não procura a morte, enfrenta-a e vence-a quando inopinadamente esta lhe surge no caminho. O mundo tornou-se, decididamente, numa enorme capoeira...”

Em fundo: H.M. Royal Marines Band - “Lawrence of Arabia

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