CARTAS DE INGLATERRA - VI
GRANDEZA E QUEDA LIVRE DOS CLUBES LONDRINOS
Não me considero um deslumbrado pelos tiques e caturreiras britânicas, e reputo de profundamente ridículo o hábito (também em Portugal corrente em certos círculos nativos) do macaqueio dos rituais oxonianos e da adaptação do estilo terso e distinto do corte de Saville Row à Avenida de Roma ou ao Chiado, para não falar das peninhas, dos chapelinhos, dos tartans e dos tweeds que, fora dos parques de Chatsworth, Blenheim ou Argyll, soam a parvoice nas coutadas do Além Tejo. Confesso, contudo, o meu fraco pelos clubes ingleses. É uma pecha que devo ao meu primo Archibald.
Archie é o que na Velha Albion se chama um "curmudgeon", i.e. o que poderia definir-se como o resultado do cruzamento entre um marreta e um caturra. Fresco nas suas oitenta primaveras, retirado do Foreign Office e cada vez mais parecido no facies e no volume ao impagável Robert Morley, tolera-me paternalmente como a um parente exótico que se pudesse ter na Manchúria, e confessa-se eternamente grato por três favores, diz ele, que lhe fiz: ter-lhe dado a conhecer um ror de queijos e vinhos nacionais com os quais periodicamente se intoxica, ter-lhe proporcionado o que considera a revelação do supino ridículo (a "utterly hilarious" comunidade dita britânica do Porto, a que chama de "mongrels") e por lhe ter ensinado as únicas frases em português que conhece da Pátria do Junqueiro ("Ów bibeda Ingladerrra, Ów cínica imbudente...etc. etc.") que invariavelmente declama tonitroante à entrada nas pousadas da Enatur que ocasionalmente frequenta.
Solteirão inveterado, Archie é também um "club man", um especimen que partilha a sua vida entre o interior rural e a rodoma clubística de Pall Mall; por conta dessa circunstância e nas já raras vezes que ponho o pé em Londres, não dispenso o ritual de o acompanhar duas ou três vezes a almoçar ou a jantar ao seu club, The Reform. Sempre se queixou que não se lhe ajeitava ao carácter, aos gostos e à família política, mas ali se enraizou e garanto que diz bem com a grandeza neoclássica do lugar . Mas é notória a irritação de Archie: o clube cedeu ao "género" e admitiu mulheres nas suas fileiras; gente "quite ordinary" como estilistas, actores e locutores de televisão assaltam literalmente a mesa dos drinks servidos ao fim do dia no salão ladrilhado; o arcaico sistema mecânico das chapinhas do bengaleiro mudou; e os decantados produtos da cozinha são servidos no comedouro por pessoal filipino que enxameia os salões onde se refastelou Chesterton. Gozando do complexo esquema de filiações partilhadas que caracteriza o sistema clubístico britânico, o primo Archie gostava também de frequentar o refúgio vitoriano do oficialato britânico do Império, o "Naval and Military", o velho "In & Out" (dos lampioes que assinalavam os portões) junto a Green Park; compraziam-no as fieiras de telas donde nos olhavam olímpicos Curzon, Clive, Gordon, Luggard e a própria Imperatriz Victoria, as panóplias de cutelos e lanças exóticas, a serena palidez das cores georgianas, o cheiro a cera e a excelência do porto; sobretudo, agradava-lhe sentar-se à saída na cadeira de lavor indiático, velho trono de batalha do grande Tipu, Sultão do Mysore, postado ali para perpétuo opróbio do vencido em Srirangapatnam no ano de 1799. O clube mudou-se para perto de St. James Square; a cadeira foi-se discretamente, os velhos sobreviventes do Império subiram aos Elísios, o cheiro não é o mesmo, "the coloured people" que só tinha presença nos triunfos pintados nas paredes, tem hoje assento nas poltronas reencoiradas, e, escândalo dos escândalos, os salões estão mercenariamente abertos a "meetings", "presentations" e ao "powerpoint" multicor dos falcões do mundo marchante e dos seus cumplices americanos em trânsito. Pobre Archie! há dias em que tenho mesmo pena dele...
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