DA MINHA GAVETA. DÉCADAS DE BARROS
Com a expressa licença de Eurico de Barros, e a bem da homenagem à minha geração, aqui ponho e deixo uma sua bela crónica dos idos de Fevereiro de 95, no Diário de Notícias:
“Nascemos a olhar para ela.
Com a expressa licença de Eurico de Barros, e a bem da homenagem à minha geração, aqui ponho e deixo uma sua bela crónica dos idos de Fevereiro de 95, no Diário de Notícias:
“Nascemos a olhar para ela.
Aviso: esta é uma crónica sobre gerações. Quem sentir que ainda não pertence a nenhuma, ou já não tem pachorra para a que devia ser sua, favor passar adiante. Aqui há dias, fiz Porto-Lisboa num carro cheio de amigos e colegas, todos já a jogar no meio campo dos trinta anos, uns ainda thirtysomething, outras já thirtytoomuch. Depois do farto conforto das sandes de leitão da Mealhada, e enquanto a viatura zunia pela A-1 abaixo, demos connosco, já não sei por que pirueta da conversa, à procura do nosso património geracional comum. A componente político-ideológica ficou logo de fora. Em termos de antes do Vinte-e-Cinco-do-Quatro, nenhum tinha sido antifascista por óbvia indisponibilidade mental e etária (no máximo, só anti-Matemática no liceu, anti-álbuns dos Kiss em música), ninguém tinha andado na guerra do Ultramar ou fintado a mesma por razões idem. E em termos de pós-Vinte-e-Cinco-do-Quatro, cada um tinha andado, brevemente, a fazer disparates pró-abrileiros ou contra-revolucianários avulsos, uns bandeados com o esquerdelho, outros coladitos ao centro-direitista, mas todos sem expressão político-militante que se visse para ser cola de geração. Passou-se depois para a cultura mais a popular que a alta. Tínhamos todos brincado mais ou menos com os mesmos brinquedos, lido alguns dos mesmos livros juvenis e devorado bastantes das mesmas histórias aos quadradinhos, ouvido muitos dos mesmos discos e vista uma considerável quantidade dos mesmos filmes, com referências básicas comuns mas preferências flutuantes. Até que alguém se lembrou de falar no dia em que Lisboa ficou deserta para ver na televisão o último episódio do Fugitivo. Toda a gente naquele carro se lembrava limpidamente do Fugitivo, das caretas canastronas do David Janssen, que nunca mais deitava a mão ao maneta, e do Barry Morse, que fazia de polícia e depois entrou no Espaço:1999, com o Martin Landau e a Barbara Bain, que tinham sido da Missão Impossível. Era isso, a televisão. Todos nos lembrávamos, do Daktari e dos nomes do actor principal (Marshall Thompson), do leão zarolho (Clarence) e da macaca salta-pocinhas (Judy), do elenco principal do Mister Solo (Robert Vaughn, David McCallum, Leo G. Carroll) e da UNCLE e de ter possuído o carrinho Matchbox respectivo, dos fatos de couro da Diana Rigg (slurp!) e do chapéu-de-chuva-florete do Patrick Macnee nos Vingadores, onde o detective à paisana do Tight Rope escondia a pistola, do porco do Viver no Campo, do urso de 0 Bom Gigante, do golfinho do Flipper, do cão do Rin-Tin-Tin, do canguru esperto como dez corais do Skippy, do Chuck Connors a laçar girafas no Cowboy em Africa, que era África de estúdio na Califórnia e nós ralados na altura, dos apaches ululantes do High Chaparral, da Barbara Stanwyck no Grande Vale, do papel do Anthony Hopkins na monumental Guerra e Paz da BBC, do guarda-roupa fatela do Tony Curtis e dos engates aristocráticos do Roger Moore nos Persuasores, Roger Moore que quando fazia de Santo aparecia-lhe uma auréola a fazer “plim!” por cima do penteado inatacável, então um efeito especial, hoje um defeito normal. Não havia naquela viatura uma única pessoa que se tivesse esquecido da música-tema da Bonanza, de ter tido muito medo do fantasma do Louvre no Belphegor, de ter desejado pertencer com todas as suas forças ao grupo dos Pequenos Vagabundos, estranhado a fauna selvagem do Kimba falar japonês, de ter vibrado sempre que o Roy Thinnes desmascarava um extraterrestre e ele se desfazia em fragmentos de luz nos Invasores, da revolução que tinham sido as primeiras emissões à hora do almoço, havia uma série diferente todos os dias, a mais kitsch era A Família Partridge, todos com calças à boca de sino de catedral e a cantar em playback, e a Susan Dey, futura Teias da Lei, a espicaçar-nos a puberdade. Pois é. Nascidos com a televisão estatal, a preto e branco e a fechar a emissão a horas respeitáveis, acabámos por argamassar todas as séries estrangeiras em que gastámos os olhos num património cultural e afectivo compartilhado, no cimento audiovisual de uma geração. Que mal há nisso? Absolutamente nenhum. Não crescemos deformadinhos por ficarmos acordados até aparecer a bandeira e soar o hino nacional no ecrã, não nos transformámos em sociopatas por termos engolido tanta violência, fazemos figura de enciclopédias andantes sempre que a televisão dos velhos tempos vem à baila em sociedade e pusemos muito pão e leite na mesa das famílias dos nossos oculistas. Além disso, nessa altura, só havia um político na televisão -- o almirante Américo Tomás -- e dezenas de séries diferentes. Hoje, há dezenas de políticos e séries quase nenhumas. Não têm inveja, putos?”
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