Am I blue?
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SÓ
Ao contrário de muitos que confessadamente regressam de férias num estado próximo do embrutecimento e felizes, o fim da saison tem sobre mim o efeito incómodo da lucidez apurada pelo sol e pelo mar; a sensibilidade parece que se agudiza para mirar o mundo e para, inevitavelmente, desaguar na melancolia. Antigamente, a esse estado interpretava-o como o resultado fatal da expulsão do paraíso terreal da insouciance de infante, de rapazinho e até de adolescente, confrontado com a volta: a volta à escola, ao liceu, à Faculdade, enfim, às obrigações que, em gravidade e volume, iam subindo em flecha com o correr dos anos. Pensando bem, acho até que no meu calendário bizantino o Dia de Ano Novo caía no dia fatal da sequência ao da volta.
O mal é que hoje a volta já não é àqueles circunstancialismos que todos temos definidos algures no pano da vida, mas à própria vida no país onde os fados nos fizeram nascer. E há muito tempo que assim não sentia a volta, talvez porque sombrio augúrio dos olhos com que vou encarar o ano novo que aí se anuncia. É da crise, seja ela da natureza que for? Não. Como o perdigueiro que estaca e levanta a pata, de orelha fita, já percebi. Este ano, o grande choque da minha volta é o sentimento da imutabildade, ou se quiserem, da irremissibilidade da mudança. Ou o botão da telefonia nacional pôs tudo mais alto ou o que já havia de mau, vem reverdecido de férias para se manifestar musculadamente que está bem, obrigadinho; o país e a sociedade parece que fizeram culturismo, aquele do músculo flectido, grosseiro e oleoso, uma autêntica cordilheira de bossas no canastro da sociedade que não há tenção de mudar: a intragabilidade dos políticos, a imbecilidade da malta dos media, a ordinarice das elites, a imobilidade e o embotamento dos afins, e no geral, as gentes; as gentes, mais alarves, mais politicamente correctas, mais esquerdas, mais reaccionárias, mais piegas, mais ignaras, mais agrestes e mais espelhadas naquele escaravelho dito estercorário por arrastar por montes e vales a sua própria bola de bosta, que neste caso português é a vida e o mundo da bola, propriamente dita… et pour cause dispensando, por redundante, o qualificativo da composição.
Pus-me a pensar se estaria a ficar a velho, um pensamento que esperava ocorresse um poucochinho mais adiantado nos anos; afastei a mosca, lembrando-me que, como alguém dizia, não há velhos, há doentes. Como, Deus louvado, estou bemzinho, deve ser outra coisa. O que eu estou é só. Não o só da desgraçada solidão da unidade que é a lepra dos nossos dias, mas o só que é o dos solitários em que se tornaram todos aqueles que, à volta ou noutra qualquer circunstância de lucidez analítica global, perguntam de dentro para fora, “que tenho eu já a ver com isto tudo”? Os soldados deviam senti-lo na trincheira, os exilados na terra em que comem o pão que o diabo amassou, os doentes na enfermaria à hora da malga de sopa rala partilhada com os colegas da mazela especializada do bloco. "O que tenho eu a ver com isto?" A contragosto, nada ou muito pouco. Ou melhor, eles é que nada têm ou não querem ter nada a ver comigo. Antes assim. No mundo onde nasci, já não posso tocar nos mais velhos que amei e respeitei, pela razão simples de que já cá não estão; cada vez me revejo menos no charuto, na presunção burguesa, na cultura pedante, na cupidez dos que comigo cresceram nos mesmos anos; vou percebendo pouco dos mais novos, e, em boa verdade, não me interessa uma fava esse mundo de morangos e açúcar…
Estou só. Dear me, diria o primo Archie, quero lá bem saber. Considero dissoluto o pactum subjectionis que existiu enquanto acreditei na viabilidade da traditio das coisas em que fui criado. Não passo a explicar, porque já um dia me expliquei.
Depois da volta e neste meu dia de Ano Novo, já fiz o meu propósito. A partir de agora sou autista.
Ao contrário de muitos que confessadamente regressam de férias num estado próximo do embrutecimento e felizes, o fim da saison tem sobre mim o efeito incómodo da lucidez apurada pelo sol e pelo mar; a sensibilidade parece que se agudiza para mirar o mundo e para, inevitavelmente, desaguar na melancolia. Antigamente, a esse estado interpretava-o como o resultado fatal da expulsão do paraíso terreal da insouciance de infante, de rapazinho e até de adolescente, confrontado com a volta: a volta à escola, ao liceu, à Faculdade, enfim, às obrigações que, em gravidade e volume, iam subindo em flecha com o correr dos anos. Pensando bem, acho até que no meu calendário bizantino o Dia de Ano Novo caía no dia fatal da sequência ao da volta.
O mal é que hoje a volta já não é àqueles circunstancialismos que todos temos definidos algures no pano da vida, mas à própria vida no país onde os fados nos fizeram nascer. E há muito tempo que assim não sentia a volta, talvez porque sombrio augúrio dos olhos com que vou encarar o ano novo que aí se anuncia. É da crise, seja ela da natureza que for? Não. Como o perdigueiro que estaca e levanta a pata, de orelha fita, já percebi. Este ano, o grande choque da minha volta é o sentimento da imutabildade, ou se quiserem, da irremissibilidade da mudança. Ou o botão da telefonia nacional pôs tudo mais alto ou o que já havia de mau, vem reverdecido de férias para se manifestar musculadamente que está bem, obrigadinho; o país e a sociedade parece que fizeram culturismo, aquele do músculo flectido, grosseiro e oleoso, uma autêntica cordilheira de bossas no canastro da sociedade que não há tenção de mudar: a intragabilidade dos políticos, a imbecilidade da malta dos media, a ordinarice das elites, a imobilidade e o embotamento dos afins, e no geral, as gentes; as gentes, mais alarves, mais politicamente correctas, mais esquerdas, mais reaccionárias, mais piegas, mais ignaras, mais agrestes e mais espelhadas naquele escaravelho dito estercorário por arrastar por montes e vales a sua própria bola de bosta, que neste caso português é a vida e o mundo da bola, propriamente dita… et pour cause dispensando, por redundante, o qualificativo da composição.
Pus-me a pensar se estaria a ficar a velho, um pensamento que esperava ocorresse um poucochinho mais adiantado nos anos; afastei a mosca, lembrando-me que, como alguém dizia, não há velhos, há doentes. Como, Deus louvado, estou bemzinho, deve ser outra coisa. O que eu estou é só. Não o só da desgraçada solidão da unidade que é a lepra dos nossos dias, mas o só que é o dos solitários em que se tornaram todos aqueles que, à volta ou noutra qualquer circunstância de lucidez analítica global, perguntam de dentro para fora, “que tenho eu já a ver com isto tudo”? Os soldados deviam senti-lo na trincheira, os exilados na terra em que comem o pão que o diabo amassou, os doentes na enfermaria à hora da malga de sopa rala partilhada com os colegas da mazela especializada do bloco. "O que tenho eu a ver com isto?" A contragosto, nada ou muito pouco. Ou melhor, eles é que nada têm ou não querem ter nada a ver comigo. Antes assim. No mundo onde nasci, já não posso tocar nos mais velhos que amei e respeitei, pela razão simples de que já cá não estão; cada vez me revejo menos no charuto, na presunção burguesa, na cultura pedante, na cupidez dos que comigo cresceram nos mesmos anos; vou percebendo pouco dos mais novos, e, em boa verdade, não me interessa uma fava esse mundo de morangos e açúcar…
Estou só. Dear me, diria o primo Archie, quero lá bem saber. Considero dissoluto o pactum subjectionis que existiu enquanto acreditei na viabilidade da traditio das coisas em que fui criado. Não passo a explicar, porque já um dia me expliquei.
Depois da volta e neste meu dia de Ano Novo, já fiz o meu propósito. A partir de agora sou autista.
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