RETRATOS DE TRABALHO IV – JORGE O’NEILL
"...Uma das coisas que naquele tempo causavam maior impressão ao nosso espírito infantil, quando visitávamos o excêntrico habitante da quinta do Pinheiro, era o seu quarto de dormir. Que diferença de mobília, em relação a que toda a gente usa. Imagine-se um vasto salão, de cujo tecto pendiam trapézios e argolas de ginástica; a um lado, barras fixas, e mais alem, a um canto, um montão de pesos, alguns enormes. Pelas paredes, sabres, floretes, mascaras e guantes de esgrima. Noutro ponto da casa, uma enorme tina de banho, que mais parecia um tanque. E a cama? perguntava a gente quando ali chegava, e ouvia dizer o destino daquele quarto. Procurando bem, lá se encontrava;. a um dos cantos via-se um pequeno biombo de dobrar, forrado de papel; era ali detrás que estava um leito de ferro, a cujo lado pendiam da parede… dois clarins! Jorge O'Neill dormia apenas as horas estritamente indispensáveis para o repouso do seu corpo vigoroso. Mal acordava, de manhã cedo, fazia um toque de clarim, representativo de uma ordem, que o criado, silencioso, executava com uma pontualidade militar; correspondia esse toque à voz de: preparar banho! Assim que a tina estava cheia, O'Neill metia-se dentro e tomava um banho pouco demorado. Saltava depois para o trapézio, daí para as barras fixas, erguia os pesos de ferro, retemperava, enfim, nesses exercícios de destreza e força a energia da sua musculatura. Às vezes esgrimia com um criado que tinha, e que também conhecia um pouco o jogo das armas. Ao princípio o servo, todo respeitoso, limitava-se a parar os golpes como podia e sabia, não se atrevendo a atacar o patrão; este, porém, intimava-o a atacar também, sob pena de lhe atirar botes de quebrar osso; e, se bem o dizia, melhor o fazia, até que o bom do criado, todo dorido, procurava vingar-se cascando no patrão. Findos estes ou outros semelhantes exercícios, vestia-se, e o som do clarim reboava novamente pelas casas. Vinha o criado e trazia-lhe o almoço ao quarto. Nesse tempo o Sr. Jorge O'Neill vinha todos os dias para Lisboa, montado garbosamente no seu cavalo preto. No verão usava sempre chapéu mole, de abas largas, com uma capa branca, que lhe resguardava os ombros da ardência do sol. Muitas outras excentricidades se contam… não nos permite, porem, o espaço que dispomos referi-las todas, como desejávamos, e seria curioso… Todos conheciam em Lisboa aquele belo velho, alto, corpulento, de farta barba quasi branca, trajando sempre jaqueta, cinta, calças à cavaleira, de chapéu com largas abas. Na cinta, diziam, andavam sempre duas pistolas, duas navalhas, dois relógios, um estojo de cirurgia, uma lata com sandwiches, chocolate, etc., e um cinto de natação até, tudo para a eventualidade de ter que tentar uma viagem, ou de defender-se, o que parecia notar um fundo de mania de perseguição. Apesar dos seus sessenta e tantos anos, O'Neill não faltava nunca a sua casa de comércio, na rua das Flores, onde há anos se acham os escritórios da Compagnie des Messageries Maritimes. Era, porém, tão conspícuo negociante, como sportman consumado. Atirava ao alvo como poucos, jogava o florete e a espada na perfeição, era exímio nadador e ginasta, falava umas poucas de línguas com perfeição, montava como um professor, e conhecia e apreciava apaixonadamente a música. A todos estes predicados, que formam um homem de boa educação, reunia ele uma grande inteligência, e uma bondade de carácter quasi inexcedível…”
L.A. Palmeirim, cit. in Os Excêntricos do meu Tempo (1891)
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