VALERÁ A PENA?
Um esclarecimento sobre a compatibilidade do desencanto e da intervenção.
Um leitor e comentador, entre várias expressões que me penhoram (sobretudo a lembrança de linhas que já julgava sepultadas nos arquivos) teve a virtude de me fazer pensar e repensar posturas declaradas em formas que já são antigas ao ritmo da blogosfera. Nesse passado post interrogava-me eu se
“…valerá a pena combater o bom combate, na esperança de melhores dias? É um facto que durante anos e anos, regime após regime, guerra após guerra, paz após paz, a relativa unidade estruturante dos Portugueses permitiu na quadrícula geográfica a laboração e a sobrevivência de uma ideia de “portugalidade” com os correspondentes sentimentos de identificação e adesão, e até de “cumplicidade” entre portugueses. Há uma frondosa corrente de pensamento e de doutrina que assentou a sua vitalidade, a sua sedução, e até, a sua poesia, no dado adquirido da consistência étnica dos velhos habitantes do torrão nacional, nas marcas deixadas pelo contacto e pela luta continuada face ao meio onde secularmente se fixou, na memória da experiência histórica comum, enfim, na maneira de se ser face à vida e aos outros, que é no fundo o resultado depurado da interacção dos anteriores. Registo Teixeira de Pascoais (na Arte de Ser Português), ou Jorge Dias (Estudos do Carácter Nacional Português), ou Cunha Leão (O Enigma Português) como autores dos que mais aguda e realisticamente desceram às profundezas do ethos nacional. Lamento muito deixar de parte as variações de autores como António Quadros ou Agostinho da Silva, cujo simpático delírio causou estragos ainda difíceis de avaliar em termos da acreditação nos meios da intelectualidade tradicionalista de mitos universalistas e interculturais do género do 5º Império da Portugalidade, do “abraço armilar” ou da lusofonia mística. A essa escatologia (no sentido teológico, precise-se) estamos a vê-la todas os dias no Rossio, no Martim Moniz, no Catujal, na Linha de Sintra, no sucesso da CPLP ou na simpatia com que diariamente nos brindam os “irmãos” africanos ou brasileiros…
Durante a maior parte da nossa História, a portugalidade, a tradição e as formas de adesão “nacionalista” que ela suscitava, assentaram em expressões particulares e culturalmente distintas de espiritualidade religiosa, de estética, de adopção de determinadas instituições do Poder, de sentimento histórico, de sentimentos de pertença, de formas de relacionamento social interno e de formas de relacionamento no exterior, de sentido crítico, de sensatez e até de sentido de humor.
A quebra demográfica, a globalização acelerada, a introdução em progressão geométrica do elemento alienígena no tecido nacional, a suburbanização das populações e a decadência do espírito crítico são outros tantos golpes a corroer a viabilidade dessa tradição, e, em simultâneo, a criar os fundamentos de um mundo novo. E chegará o dia em que seremos confrontados -- cada vez mais o somos -- com o facto de que o sentirmo-nos portugueses não se traduz num viver digno numa determinada comunidade de cultura, história e etnia, mas numa vil sujeição aos tiques e aos ritmos de uma promiscuidade de vulgaridades, de folclores e de tribus, que nem sequer é ou já será a portuguesíssima “apagada e vil tristeza”.
E assim como a ideia tradicional de cariz jurídico-político do pactum subjectionis era naturalmente assumido ou justamente dissolvido por tirania ou outras formas de desvio, começo a admitir que o pactum que me liga à ideia nacional se dissolve gradualmente por tirânica degradação dos pressupostos da adesão nacionalista. A ideia tradicional de “portugalidade” é cada vez mais distante da realidade social e cultural que se encerra nas fronteiras políticas, limitando ou cerceando a possibilidade de persistirem ou de se desenvolverem os tradicionais sentimentos de identificação e adesão próprios dos crentes daquela. Com a propensão nacional para a simplificação chineleira, essa nova realidade continuará a suscitar identificações e adesões, mas não, decerto, as minhas. Portugal e os Portugueses galopam felizes em direcção a uma nova identidade fandanga, onde, com as anónimas menos-valias comuns ao triste Ocidente dos nossos dias, se amalgam específicos valores nacionais, do pior do que sempre em nós houve mas que agora perdemos a vergonha de exibir porque fomos abençoados com o dom de relativizar os tais “sentimentos passivos” de que falava Almada -- “a resignação, o fatalismo, a indolência, o medo do perigo, o servilismo, a timidez” -- cumulando no resultado já diagnosticado (e quanto nos custou ouvi-lo da boca do galego Camilo José Cela): tristes, invejosos, sem grandeza porque sem auto-estima.
Como não tenho feitio nem gosto para ficar sentado a sonhar com o 5º Império com Tróia a arder à volta, arrogo-me o direito de ponderar se também vale a pena considerar essa vertente poderosa do nacionalismo que é o apego à tradição. E pergunto-me se ainda haveremos de regressar aos tempos heróicos do medioevo em que nos destroços barbarizados do Império Romano a tradição foi piedosamente conservada em ilhas de cultura, geograficamente distantes mas coesas numa noção transcendental do destino humano, alheios a vínculos nacionais (se é que havia nações) e sobreviventes na insistência da possibilidade de ver o mundo, como Dante, sub specie civilitatis…”
Posição desanimada alguém lhe chamou. Será, mas quod scripsit, scripsit. Talvez a isso melhor se chame desilusão, admitida a ilusão na acepção que hoje perdemos e que tanto quanto creio só subsiste, formosamente, no tão espanhol e profundo conceito de ilusión.
O texto veio à colação pela pena do leitor-comentador, que falou de tradição, falou do bom combate, falou da resistência, falou de degradação; e de tudo falou aludindo ao referendo do próximo dia 11/2, e evocando “o terramoto moral que se anuncia [que] significa o colapso do Estado de Direito e a sepultura da vida social portuguesa no abismo da desumanidade”. Concordo com essencial da opinião. Aliás, tenho a maior das facilidades em declarar-me pelo “não”, sem complicações, sem especiosidades, sem circunlóquios. Decorre por lógica intrínseca da minha própria natureza de crente e de crente cristão; decorreria do próprio feixe de valores inerentes a um conceito de humanismo que certamente perfilharia caso não tivesse o amparo do quadro mais rico dessa crença. Decorre, enfim (e não é pouco) da necessidade de marcar, ainda que simbolicamente, a inaceitabilidade da imposição ínvia, cobarde e prepotente das formas iníquas e aberrantes de uma normatividade que sugere o nascimento ou o crescimento de um Estado vicioso e pervertido, em tudo contrastante com o que de facto, mal e bem, foi a nossa tradição ético-jurídica, ou, com maior amplitude, a “consciência nacional portuguesa”. Nisto – diga-se o que se disser -- confesso a minha satisfação pelo salutar sinal que, neste campo (e sem desprimor para outros) um significativo número de juristas portugueses, tanto criadores, como intérpretes e aplicadores da Lei, vêm dando.
E que tem isto tudo a ver com a posição que há tempos declarei como minha? Tem a ver que se o “sim” prevalecer, irei ler tal postura como um sintoma mais do estado cadaveroso deste triste País que -- por demissão ou inexistência das chamadas elites e da pertinaz ignorância de uma massa que já só se interessa e interroga sobre a sua memória histórica nas arenas da televisão -- cada vez mais se distancia daquilo que foi justificação da identificação e adesão de gerações sucessivas de portugueses, num mecanismo que acima procurei esboçar. Mas mais do que uma posição que no plano da tradição entendo como portuguesa ou consentânea com valores enformadores de uma “consciência nacional portuguesa” -- e por todas as razões que pessoalmente acima invoco -- entendo que uma postura de “não” é, em profundidade e nos tempos que correm, mais uma expressão teimosa de, face à barbárie e à rebelião das massas de que falava Ortega, continuar a afirmar o mundo e a nossa posição no mundo sub specie civilitatis.
Um esclarecimento sobre a compatibilidade do desencanto e da intervenção.
Um leitor e comentador, entre várias expressões que me penhoram (sobretudo a lembrança de linhas que já julgava sepultadas nos arquivos) teve a virtude de me fazer pensar e repensar posturas declaradas em formas que já são antigas ao ritmo da blogosfera. Nesse passado post interrogava-me eu se
“…valerá a pena combater o bom combate, na esperança de melhores dias? É um facto que durante anos e anos, regime após regime, guerra após guerra, paz após paz, a relativa unidade estruturante dos Portugueses permitiu na quadrícula geográfica a laboração e a sobrevivência de uma ideia de “portugalidade” com os correspondentes sentimentos de identificação e adesão, e até de “cumplicidade” entre portugueses. Há uma frondosa corrente de pensamento e de doutrina que assentou a sua vitalidade, a sua sedução, e até, a sua poesia, no dado adquirido da consistência étnica dos velhos habitantes do torrão nacional, nas marcas deixadas pelo contacto e pela luta continuada face ao meio onde secularmente se fixou, na memória da experiência histórica comum, enfim, na maneira de se ser face à vida e aos outros, que é no fundo o resultado depurado da interacção dos anteriores. Registo Teixeira de Pascoais (na Arte de Ser Português), ou Jorge Dias (Estudos do Carácter Nacional Português), ou Cunha Leão (O Enigma Português) como autores dos que mais aguda e realisticamente desceram às profundezas do ethos nacional. Lamento muito deixar de parte as variações de autores como António Quadros ou Agostinho da Silva, cujo simpático delírio causou estragos ainda difíceis de avaliar em termos da acreditação nos meios da intelectualidade tradicionalista de mitos universalistas e interculturais do género do 5º Império da Portugalidade, do “abraço armilar” ou da lusofonia mística. A essa escatologia (no sentido teológico, precise-se) estamos a vê-la todas os dias no Rossio, no Martim Moniz, no Catujal, na Linha de Sintra, no sucesso da CPLP ou na simpatia com que diariamente nos brindam os “irmãos” africanos ou brasileiros…
Durante a maior parte da nossa História, a portugalidade, a tradição e as formas de adesão “nacionalista” que ela suscitava, assentaram em expressões particulares e culturalmente distintas de espiritualidade religiosa, de estética, de adopção de determinadas instituições do Poder, de sentimento histórico, de sentimentos de pertença, de formas de relacionamento social interno e de formas de relacionamento no exterior, de sentido crítico, de sensatez e até de sentido de humor.
A quebra demográfica, a globalização acelerada, a introdução em progressão geométrica do elemento alienígena no tecido nacional, a suburbanização das populações e a decadência do espírito crítico são outros tantos golpes a corroer a viabilidade dessa tradição, e, em simultâneo, a criar os fundamentos de um mundo novo. E chegará o dia em que seremos confrontados -- cada vez mais o somos -- com o facto de que o sentirmo-nos portugueses não se traduz num viver digno numa determinada comunidade de cultura, história e etnia, mas numa vil sujeição aos tiques e aos ritmos de uma promiscuidade de vulgaridades, de folclores e de tribus, que nem sequer é ou já será a portuguesíssima “apagada e vil tristeza”.
E assim como a ideia tradicional de cariz jurídico-político do pactum subjectionis era naturalmente assumido ou justamente dissolvido por tirania ou outras formas de desvio, começo a admitir que o pactum que me liga à ideia nacional se dissolve gradualmente por tirânica degradação dos pressupostos da adesão nacionalista. A ideia tradicional de “portugalidade” é cada vez mais distante da realidade social e cultural que se encerra nas fronteiras políticas, limitando ou cerceando a possibilidade de persistirem ou de se desenvolverem os tradicionais sentimentos de identificação e adesão próprios dos crentes daquela. Com a propensão nacional para a simplificação chineleira, essa nova realidade continuará a suscitar identificações e adesões, mas não, decerto, as minhas. Portugal e os Portugueses galopam felizes em direcção a uma nova identidade fandanga, onde, com as anónimas menos-valias comuns ao triste Ocidente dos nossos dias, se amalgam específicos valores nacionais, do pior do que sempre em nós houve mas que agora perdemos a vergonha de exibir porque fomos abençoados com o dom de relativizar os tais “sentimentos passivos” de que falava Almada -- “a resignação, o fatalismo, a indolência, o medo do perigo, o servilismo, a timidez” -- cumulando no resultado já diagnosticado (e quanto nos custou ouvi-lo da boca do galego Camilo José Cela): tristes, invejosos, sem grandeza porque sem auto-estima.
Como não tenho feitio nem gosto para ficar sentado a sonhar com o 5º Império com Tróia a arder à volta, arrogo-me o direito de ponderar se também vale a pena considerar essa vertente poderosa do nacionalismo que é o apego à tradição. E pergunto-me se ainda haveremos de regressar aos tempos heróicos do medioevo em que nos destroços barbarizados do Império Romano a tradição foi piedosamente conservada em ilhas de cultura, geograficamente distantes mas coesas numa noção transcendental do destino humano, alheios a vínculos nacionais (se é que havia nações) e sobreviventes na insistência da possibilidade de ver o mundo, como Dante, sub specie civilitatis…”
Posição desanimada alguém lhe chamou. Será, mas quod scripsit, scripsit. Talvez a isso melhor se chame desilusão, admitida a ilusão na acepção que hoje perdemos e que tanto quanto creio só subsiste, formosamente, no tão espanhol e profundo conceito de ilusión.
O texto veio à colação pela pena do leitor-comentador, que falou de tradição, falou do bom combate, falou da resistência, falou de degradação; e de tudo falou aludindo ao referendo do próximo dia 11/2, e evocando “o terramoto moral que se anuncia [que] significa o colapso do Estado de Direito e a sepultura da vida social portuguesa no abismo da desumanidade”. Concordo com essencial da opinião. Aliás, tenho a maior das facilidades em declarar-me pelo “não”, sem complicações, sem especiosidades, sem circunlóquios. Decorre por lógica intrínseca da minha própria natureza de crente e de crente cristão; decorreria do próprio feixe de valores inerentes a um conceito de humanismo que certamente perfilharia caso não tivesse o amparo do quadro mais rico dessa crença. Decorre, enfim (e não é pouco) da necessidade de marcar, ainda que simbolicamente, a inaceitabilidade da imposição ínvia, cobarde e prepotente das formas iníquas e aberrantes de uma normatividade que sugere o nascimento ou o crescimento de um Estado vicioso e pervertido, em tudo contrastante com o que de facto, mal e bem, foi a nossa tradição ético-jurídica, ou, com maior amplitude, a “consciência nacional portuguesa”. Nisto – diga-se o que se disser -- confesso a minha satisfação pelo salutar sinal que, neste campo (e sem desprimor para outros) um significativo número de juristas portugueses, tanto criadores, como intérpretes e aplicadores da Lei, vêm dando.
E que tem isto tudo a ver com a posição que há tempos declarei como minha? Tem a ver que se o “sim” prevalecer, irei ler tal postura como um sintoma mais do estado cadaveroso deste triste País que -- por demissão ou inexistência das chamadas elites e da pertinaz ignorância de uma massa que já só se interessa e interroga sobre a sua memória histórica nas arenas da televisão -- cada vez mais se distancia daquilo que foi justificação da identificação e adesão de gerações sucessivas de portugueses, num mecanismo que acima procurei esboçar. Mas mais do que uma posição que no plano da tradição entendo como portuguesa ou consentânea com valores enformadores de uma “consciência nacional portuguesa” -- e por todas as razões que pessoalmente acima invoco -- entendo que uma postura de “não” é, em profundidade e nos tempos que correm, mais uma expressão teimosa de, face à barbárie e à rebelião das massas de que falava Ortega, continuar a afirmar o mundo e a nossa posição no mundo sub specie civilitatis.
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