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Je Maintiendrai

"... Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche". Pol Vandromme

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Friday, November 02, 2007










…Trote largo, e prà frente!

Bic deu o mote, o amigo das Afinidades afinou as guitarras, JM dedilhou umas harmonias e o confrade Jansénico traçou de arranque e com maestria o itinerário das bestas de outras eras, do Quebra-Bilhas ao Campo de Sant'Anna. Pr’à sossega (como diria o inesquecível Carlos Ramos) vai passagem de uma obra fantástica que já por aqui andou – Os Excentricos do meu tempo de L.A. Palmeirim -- que dá uma imagem da cantadeira cigana Severa e do fidalgo equitador Conde de Vimioso, em tantas tardes a estrela do Campo de Santana.














A iconografia é a “condezer”: à falta da bela litografia feita sobre retrato de Mestre Alberto de Sousa (onde parará o meu album dos “Alfacinhas”?) vai uma chapa cartonada do dito Vimioso, e do filho, D. António de Portugal e Castro, que Júlio Dantas nas belas Páginas de Memórias (desaparecidas também das estantes) põe, primeiro reservado e depois de olhos marejados de lágrimas, a assistir no Nacional à recriação dos amores do Conde e da cigana cantadeira. Amorios depois passados a cinema em 1931 n’A Severa; aliás, a primeira película sonora portuguesa, com o grande cavaleiro que foi António Luís Lopes no papel do Vimioso (na foto), a castiça Dina Tereza no da Severa (idem) e o inesquecível Silvestre Alegrim (em cartouche), de Pinóia, a cantar o Fado do Timpanas.











A capelinha da Carreira (outrora fundação setecentista do Infante D. António), ficava e fica, ainda hoje ao culto, no meio da Carreira dos Cavalos, hoje Gomes Freire; há por aqui algures numa gaveta uma curiosa carta oitocentista a descrever uma largada de toiros nessa Carreira, precisamente a caminho da Praça do Campo de Santana, e a colhida de um peralvilho à porta da ermida.

E pr’a remate, vai como sanfona de fundo o Fado das Caldas, na voz – a maior! – de D. Vicente da Camara.

“…Quando eu conheci a Severa tinha ella então uns vinte e tantos annos. Estava na força da vida, e cantava acompanhando-se a guitarra:
Quem tiver filhas no mundo
Não falle das desgraçadas,
As que são hoje perdidas
Também nasceram honradas.
E com tão doloroso accento fazia vibrar as cordas da banza, que era preciso ter o coração de pedra, para não reconstruir com a melopea triste d'aquelle fado um vago poema, em que a mocidade da cantora, n'esse tempo petulante de seiva, se confundia com um instinctivo e mal disfarçado hor­ror, aos que fallavam das desgraçadas, em cujo número ella se contava, sem grande arrependimento.
O orgulho de se considerar a primeira da sua classe, de ouvir o seu nome celebrado em todas as banzas, e os seus amores assoalhados em todos os fados, desde o rigoroso, que não consente variantes, até ao mais artistico, em que a voz adormece, e acorda em requebros lânguidos, tornavam-n'a surda à voz da consciência.
A Severa não era mulher para pieguices, nem para choradeiras. Forte e resoluta como algumas d'esses viragos de que rezam as nossas chronicas, com os cabellos soltos, e o clássico cigarro ao canto da boca, não pretendia ser amada pelos seus dotes femininos, mas comprazia-se em subjugar os seus admiradores pela suavidade da sua voz de meio soprano, pelo chistoso desembaraço da sua dansa voluptuosa, e, acima de tudo, pela irascibilidade do seu génio, e não pouco também pela fortaleza do seu pulso, arredondado como de mulher, mas rijo como o de um athleta…
A Severa, a primeira e única vez que a vi, produziu-me o effeito de um duellista fanfarrão, que, provoca e offende os mais, contando com a destreza que adquiriu no jogo das armas. Um dia disse-me um amigo meu, grande amador de todas as manifestações do carácter nacional: «Você há-de vir commigo a casa da Severa, mas olhe lá como se porta, porque ella tem uma lingua de prata, e se a provoca, vae ouvir o que Mafoma nunca disse do toucinho.»
Esta prevenção aguillhoou a minha vaidade de rapaz, e resolvi-me a conhecer de perto a grande notabilidade do Bairro Alto, de quem até por vezes se occupavam os noticiarios dos jornaes, narrando as suas partidas de estouvada, sem lhe poupar os elogios devidos às suas prendas de fadista, diga-se de uma vez para sempre, ser este o único titulo de glória que a trazia pelas bocas do mundo.
Quando entrei em casa da Severa, modesta habitação, o do typo vulgar das que habitam as infelizes suas congéneres, estava ella fumando, recostada n'um canapé de palhinha, com chinellas de polimento ponteadas de retróz vermelho, com um lenço de seda de ramagens na cabeça, e as mangas do vestido arregaçadas até ao cotovello.
Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notável por uns magnifícos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparável dos seus triumphos; e pendente da parede (sacrilégio vulgar nas casas d'aquella ordem) uma péssima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça!
Antes da minha apresentação, que foi rápida, e sem cerimónia, a Severa que logo conheceu não ser eu um official do offício, isto é um fadista emérito, como quasi todas as pessoas que lhe eram apresentadas, mimoseou-me com uma saraivada de injúrias, a que eu repliquei de prompto, dando logar a uma sabbatina pouco edificante, de que me saí como defendente a contento d'ella própria, que não esperava encontrar n'um lira um contendor capaz de lhe replicar ao pé da letra. O meu companheiro ria a bandeiras despregadas do pouco modesto diálogo, que em breve terminou, para a Severa se dirigir com grande enthusiasmo ao meu amigo, o mais valente dos homens de forcado nas toiradas de curiosos d'aquelle tempo, fallando como conhecedora de causa, da última corrida de toiros, do garbo do Conde de Vimioso, e da sua mestria sem rival na arte de toirear.
O Conde de Vimioso era na realidade um verdadeiro artista. Fidalgo nas salas, a ponto de não poder ser excedido em cortezania, a sua paixão pelos cavallos e pela equitação, levavam-no a tratar directamente, de igual para igual, com todos os toireiros de profissão, com todos os alquiladores, que por as conhecer, descobriam, ou occultavam as doenças e as manhas dos cavallos que pretendiam vender ao sabor dos seus interesses de intrujões. As feiras da Luz, da Agualva e da Gollegã eram o theatro das espertezas dos negociantes de caval­los, que todos tinham mais ou menos trato com o fidalgo, que os fascinava a elles com a sua aptidão excepcional para a nobre arte de equitação, e por tabella, para as arrojadas emprezas das lides tauromachicas.
O Conde de Vimioso era um homem de estatura regular, ágil, montando a cavallo com a maior graça e donaire, farpeando um toiro com uma firmeza de pulso e um conhecimento tão profundo da arte, que foi durante muitos annos o ídolo dos espectadores das toiradas no Campo de Sant'Anna. A Severa, artista de um género diverso, mas exímia e sem rival no seu, apaixonara-se pelo Conde de Vimioso, e da convivência seguida entre ambos resultara um recíproco enthusiasmo, d'elle pelas dolencias e melancholias do fado; d'ella por todas as gentilezas equestres, especialmente pelas da escola a que o Conde de Vimioso pertencia que era a de Marialva.
A noticia da morte da Severa teve um certo echo doloroso, entre todos os que tocavam e dansavam o fado, deixando funda impressão no ânimo do fidalgo que ella popularisava na banza com os seus improvisos…

Chorae, fadistas, chorae,
Que uma fadista morreu,
Hoje mesmo faz um anno
Que a Severa falleceu.
O conde de Vimioso
Um duro golpe soffreu,
Quando lhe foram dizer
Tua Severa morreu.
Corre a sua sepultava
O seu corpo ainda vê:
«Adeus, oh! minha Severa,
«Boa sorte Deus te dê!
«La n'esse reino celeste
"Com tua banza na mão,
«Farás dos anjos fadistas
«Porás tudo em confusão.
«Até o próprio S. Pedro
«Às portas do céu sentado
«Ao ver entrar a Severa
«Bateu e cantou o fado.
«Ponde no braço da banza
«Um signal de negro fumo,
«Que diga por toda a parte
«O fado perdeu seu rumo.
«Morreu já, faz hoje um anno
«Das fadistas a raínha,
«Com ella perdeu o fado
«O gosto que o fado tinha.
«Chorae, fadistas, chorae
«Que a Severa se finou…
O gosto que tinha o fado
Tudo com ella acabou…”

L.A. Palmeirim, Os Excentricos do meu tempo (1891)

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