Há tempos, desafiou-me o confrade Réprobo que aqui trouxesse o exemplo de uma pintura, daquelas que arrebatam a alma e nos marcam o coração. De vez em quando lá ia puxando pela cabeça, pela alma e pelo coração para trazer à lide alguma coisa que se veja. E nada. Nada, estão os confrades a ver, pela impossibilidade prática de individualizar e hierarquizar a emoção estética, que a mais das vezes, apesar de a chamarmos de estética, é mais complexa pela associação emotiva a outros planos -- temporais, pessoais, emocionais ou temperamentais – que associamos à primeira visão ou à visão reveladora de uma dada obra de arte.
Todavia, como daqui a dias me meto ao caminho de Madrid para encontrar amigos velhos, aproveito para ver a grande exposição Los Grecos del Prado e está já topada a excusa de resposta ao caro Réprobo: nos 47 lienzos da mostra vejo incluído um conhecido de outros tempos, o imponente retrato de Don Julian Romero. Poucos conhecerão Don Julián Romero, dito “el de las hazañas”. É, de facto, das menos populares pinturas do Greco, porventura até pela atipicidade do estilo e das dúvidas quanto à sua atribuição.
Quem hoje passe pelo Prado vê dada à tela a dignidade e o destaque que merece; mas não era assim há vinte e poucos anos. Nesse tempo estava numa parede esconsa e solitária, mal iluminada e relativamente diminuida por contraste com as grandes vedetas que atraíam os calcorreadores das mármoreas galerias do museu madrileno. Foi também D. Antonio Truyol y Serra, numa das nossas peregrinações pedestres das tardes de Sábado, quem pela primeira vez, com o seu sempre sábio comentário, me chamou a atenção para a, de facto, espantosa pintura; era, segundo me disse, com o Saturno de Goya, das preferidas do exilado C.Schmitt no Prado.
Tela de grandes dimensões, retrata D. Julián Romero, natural de Antequera; no seu tipo marcadamente peninsular, um desses duros cabos de guerra do Siglo de Oro, Mestre de Campo do tercio da Sicília que o Duque de Alba levou às guerras da Flandres. O manto de Santiago mal lhe esconde o pomo do aço da espada, a golilha e o negrume do traje filipino. Está de joelhos e orante, ligeiramente amparado por um santo em aprestos de guerra, que uns dizem ser no manto dos lizes S. Luís de França, e outros S. Julião. Pouco importa. D. Julián, no acto da apresentação pelo seu patrono, está já perante o Criador, no qual os dois fixam uma mirada entre o sereno e o súplice.
É este um dos encantos da tela: ao contrário do que é frequente na pintura religiosa, a invulgar presença num tema secular da linha invisível que nos separa, que nos empurra ou distancia do privilégio do destinatário da visão mística.
Dir-se-ia que a explicação terrena, a palpabilidade de D. Julián estaria na inscrição do sopé da coluna da esquerda, recordando com monotonia as vicissitudes da vida guerreira do companheiro do feroz Alba, nas plagas húmidas da Flandres, iluminadas pelos fogos das praças e das terras assoladas pelo passo cerrado dos tercios viejos. Mas não. Até mesmo aqui, o distanciamento do modelo face ao observador na sua insignificância terrena. Num último assomo de soberba, a mensagem é sóbria: basta que se saiba que o retratado foi "Mestre de Campo el más famoso de los ejercitos de Italia y Flandres de cuyos hechos gloriosos están llenas las Historias".
Os mortais, pois, que se afadiguem esterilmente a buscar e a enumerar as glórias bélicas de que “están llenas las Historias”. D. Julián, “el de las Hazañas”, na majestosa simplicidade do seu manto santiaguenho e de olhar iluminado pela visão beatífica, está já a caminho da Eternidade.
****
mató a don Guido, y están
las campanas todo el día
doblando por él: ¡din-dan!
Murió don Guido, un señor
de mozo muy jaranero,
muy galán y algo torero;
de viejo, gran rezador.
Dicen que tuvo un serrallo
este señor de Sevilla;
que era diestro
en manejar el caballo,
y un maestro
en refrescar manzanilla.
Cuando mermó su riqueza,
era su monomanía
pensar que pensar debía
en asentar la cabeza.
Y asentóla
de una manera española,
que fue casarse con una
doncella de gran fortuna;
y repintar sus blasones,
hablar de las tradiciones
de su casa,
a escándalos y amoríos
poner tasa,
sordina a sus desvaríos.
Gran pagano,
se hizo hermano
de una santa cofradía;
y el Jueves Santo salía,
llevando un cirio en la mano
—¡aquel trueno!—,
vestido de nazareno.
Hoy nos dice la campana
que han de llevarse mañana
al buen don Guido, muy serio,
camino del cementerio.
Buen don Guido, ya eres ido
y para siempre jamás...
Alguien dirá: ¿Qué dejaste?
Yo pregunto: ¿Qué llevaste
al mundo donde hoy estás?
¿Tu amor a los alamares
y a las sedas y a los oros,
y a la sangre de los toros
y al humo de los altares?
¡Buen don Guido y equipaje,
buen viaje! ...
El acá
y el allá,
caballero,
se ve en tu rostro marchito,
lo infinito:
cero, cero.
¡Oh las enjutas mejillas,
amarillas,
y los párpados de cera,
y la fina calavera
en la almohada del lecho!
¡Oh fin de una aristocracia!
La barba canosa y lacia
sobre el pecho;
metido en tosco sayal,
les yertas manos en cruz,
¡tan formal!
el caballero andaluz.
Antonio Machado, Llanto de las virtudes y coplas por la muerte de don Guido (de que há uma formosa tradução por Alexandre O’Neill)
<< Home