Em volta da questão da vela.
O tema daria para mangas e hesita-se em tocar nele nem que com pinças seja, pela insatisfação que sempre fica de o abordar fora do contexto que é quase o único onde ainda hoje pervive, que é o da historiografia. Que não é o meu. Como não é meu, tudo aquilo que tem a ver com o ridículo ou oportunístico aproveitamento da questão para outras lides. Mas a tertúlia tem destas obrigações e também destas satisfações, qual a de puxar pelo bestunto e alinhar ou desalinhar umas ideias com pelo menos um ou dois confrades cuja opinião se preza.
O folclore das velinhas e a matança municipal suscitou erupções de sentimento da mais variada ordem, manancial opíparo de conclusões sobre arroubos históricos e revisionistas tão à la mode, meditações sobre o que foi e poderia ser Portugal sem essas vicissitudes da sua crónica, malifícios da Inquisição, etc.
Arrumem-se desde já as questões práticas:
A chamada “matança de Lisboa” assenta no testemunho do humanista Damião de Góis que não era propriamente um cretino e que falava de coisas que conhecia quase directamente; contudo, que tem a ver o evento com a Inquisição ou com os comportamentos de uma das duas sociedades ibéricas, usualmente tolerantes (por comparação com as barbaridades praticadas sobre as muito mais segregadas comunidades hebraicas de além Pirinéus durante toda a Idade Média), razão pela qual o episódio de Lisboa destoou pelo inusitado e feriu o sentimento do humanista, menos pelo anti-semitismo do que pelo espectáculo da ductilidade ou da volubilidade das massas, e pela maldade intrínseca do homem lupus homini. Para os que querem fazer a enxertia forçada do anti-semitismo na cultura social do tempo, nada como ler bem o texto de Góis e já agora o velho Lúcio de Azevedo para saber do que se fala.
Também, se se fala de Inquisição, seja-se honesto, naquilo em que geralmente o discurso revela superficialidade ou oportunismo. Primo, a Inquisição não nasceu para perseguir judeus, antes obedeceu a preocupações de manutenção da ortodoxia, numa época em que só havia ortodoxias, remontando a períodos muito anteriores ao das grandes perseguições ibéricas aos hebreus. Secundo, existe uma lenda negra, que já passou à história depois de trabalhos fundamentais como os de Bartolomè Benassar, ou entre nós (salvaguardado algum excesso de “mecanicismo” que ao próprio autor ouvi confessar em data tardia) depois da obra mestra de António José Saraiva. Tertio, e por arrasto, a história dos milhares arrojados às fogueiras e às torturas só fica hoje para os adeptos das versões cinematográficas d’ O Nome da Rosa ou do Código Da Vinci. Bom proveito.
A questão da “limpeza de sangue”, que convém abordar na convicção que a dita não foi um exclusivo de repressão anti-semita, mas um muito mais abrangente e complexo mecanismo de “inclusão” e “exclusão” característica das sociedades estamentais peninsulares, assente noutros critérios de “sangue” (v.g. o plebeísmo ou a mulatice) ou de “funcionalidade” (profissões mecânicas e comerciais). Relembre-se o clássico de Albert Sicroff sobre os fundamentos do sistema, a Honra e Vergonha de Pierre Bourdieu (ed FCG) e o sempre magistral José António Maravall em Poder, Honor y Elites sobre inerência objectiva do sistema a toda a sociedade, do sec. XVI a XVIII.
O problema da saída dos judeus e o progresso do país. Que tem isso a ver com a questão de 1506? É certo que houve vagas consideráveis de foragidos que foram estabelecer-se sobretudo em Marrocos, na Itália e entre os Otomanos. Dos primeiros andam por aí muitos descendentes, dos outros, comunidades de prodigiosa riqueza cultural e raiz ibérica (como a de Salónica) de quem pouco ou nada resta depois dos extermínios de há 60 anos. Está por provar a dimensão do abalo que a sua saída provocou no tecido social, económico e cultural nacional, até porque o grosso vinha de Espanha. O que não acontece com as grandes migrações do século XVII para a Holanda e para Inglaterra, directamente decorrentes da repressão inquisitorial mas com explicações que têm mais a ver com razões de rivalidade ou conflitualidade social da época, do que com anti-semitismo. Nisso, leia-se também Saraiva cum grano salis.
E já agora não se assimilem os críticos da Inquisição-instituição aos críticos do anti-semitismo. Inquisição reformada foi o que se quis, sobretudo no que ao aspecto prático de aproveitamento das potencialidades económicas da comunidade cristã-nova respeitava. “O esterco fora do seu lugar suja a casa e posto no seu lugar fertiliza o campo; e aplicando-se a doutrina e semelhança ao nosso caso, com o mais dos doutores digo, Senhor, que os judeus se tirem de onde nos sujam a casa e que se ponham onde nos fertilizem o campo”. A frase é do P. António Vieira (Cartas do Padre António Vieira, t. II, pp.365-371, ed. da IN-CM), pelo que é escusado andaram por aí a transformá-lo no Aristides de Sousa Mendes.
E posto isto, o que fica da questão da velinha no Rossio? Várias coisas: reacções naives de sentimentalismo popular despoletadas com facilidade num povo de carentes afectivos a nadar na aridez cultural e na falta de sentido crítico que caracterizam as nossas massas. O problema é que já não estamos em 1506, mas continua a haver “bem pensantes”, desses das bandas do politicamente correcto, que com habilidade manipulam esse cocktail de propensão ao sentimentalismo lacrimoso eivado de ignorância. Reacções também, de pobreza cultural ou meramente analítica por parte de uma direita de quem se esperaria mais chispa e maior poder de argumentação face à imbecilidade facilitadora da contraparte. O confrade Jansenista tem nisso toda a razão no que comenta. Como muita razão tem Combustões no diagnosticar das mazelas que ainda hoje perduram, efeitos longínquos dos policiamentos de espírito, e que outros tantos policiamentos e correspondentes denúncias de desvio à ortodoxia da “correcção de pensamento” e censuras parecem hoje gostosamente suscitar entre consideráveis camadas da população, nomeadamente as que se arrogam de ser “esclarecidas”.
Posto isto, para quê ir ao Rossio verter lágrimas, para quê inventar “causas”? Não acham que os Portugueses não têm já bastantes razões e bem reais para se carpirem? Qual o objectivo de criar-lhes no espírito mais (injustos) sentimentos de culpa, num momento em que tanto se carece de auto-confiança e de amor próprio?
Velas punha-as eu por nós todos: é triste ver que, tanto na vulnerabilidade como no primarismo dos estímulos, pouco mudámos desde o tempo de Damião de Góis.
O tema daria para mangas e hesita-se em tocar nele nem que com pinças seja, pela insatisfação que sempre fica de o abordar fora do contexto que é quase o único onde ainda hoje pervive, que é o da historiografia. Que não é o meu. Como não é meu, tudo aquilo que tem a ver com o ridículo ou oportunístico aproveitamento da questão para outras lides. Mas a tertúlia tem destas obrigações e também destas satisfações, qual a de puxar pelo bestunto e alinhar ou desalinhar umas ideias com pelo menos um ou dois confrades cuja opinião se preza.
O folclore das velinhas e a matança municipal suscitou erupções de sentimento da mais variada ordem, manancial opíparo de conclusões sobre arroubos históricos e revisionistas tão à la mode, meditações sobre o que foi e poderia ser Portugal sem essas vicissitudes da sua crónica, malifícios da Inquisição, etc.
Arrumem-se desde já as questões práticas:
A chamada “matança de Lisboa” assenta no testemunho do humanista Damião de Góis que não era propriamente um cretino e que falava de coisas que conhecia quase directamente; contudo, que tem a ver o evento com a Inquisição ou com os comportamentos de uma das duas sociedades ibéricas, usualmente tolerantes (por comparação com as barbaridades praticadas sobre as muito mais segregadas comunidades hebraicas de além Pirinéus durante toda a Idade Média), razão pela qual o episódio de Lisboa destoou pelo inusitado e feriu o sentimento do humanista, menos pelo anti-semitismo do que pelo espectáculo da ductilidade ou da volubilidade das massas, e pela maldade intrínseca do homem lupus homini. Para os que querem fazer a enxertia forçada do anti-semitismo na cultura social do tempo, nada como ler bem o texto de Góis e já agora o velho Lúcio de Azevedo para saber do que se fala.
Também, se se fala de Inquisição, seja-se honesto, naquilo em que geralmente o discurso revela superficialidade ou oportunismo. Primo, a Inquisição não nasceu para perseguir judeus, antes obedeceu a preocupações de manutenção da ortodoxia, numa época em que só havia ortodoxias, remontando a períodos muito anteriores ao das grandes perseguições ibéricas aos hebreus. Secundo, existe uma lenda negra, que já passou à história depois de trabalhos fundamentais como os de Bartolomè Benassar, ou entre nós (salvaguardado algum excesso de “mecanicismo” que ao próprio autor ouvi confessar em data tardia) depois da obra mestra de António José Saraiva. Tertio, e por arrasto, a história dos milhares arrojados às fogueiras e às torturas só fica hoje para os adeptos das versões cinematográficas d’ O Nome da Rosa ou do Código Da Vinci. Bom proveito.
A questão da “limpeza de sangue”, que convém abordar na convicção que a dita não foi um exclusivo de repressão anti-semita, mas um muito mais abrangente e complexo mecanismo de “inclusão” e “exclusão” característica das sociedades estamentais peninsulares, assente noutros critérios de “sangue” (v.g. o plebeísmo ou a mulatice) ou de “funcionalidade” (profissões mecânicas e comerciais). Relembre-se o clássico de Albert Sicroff sobre os fundamentos do sistema, a Honra e Vergonha de Pierre Bourdieu (ed FCG) e o sempre magistral José António Maravall em Poder, Honor y Elites sobre inerência objectiva do sistema a toda a sociedade, do sec. XVI a XVIII.
O problema da saída dos judeus e o progresso do país. Que tem isso a ver com a questão de 1506? É certo que houve vagas consideráveis de foragidos que foram estabelecer-se sobretudo em Marrocos, na Itália e entre os Otomanos. Dos primeiros andam por aí muitos descendentes, dos outros, comunidades de prodigiosa riqueza cultural e raiz ibérica (como a de Salónica) de quem pouco ou nada resta depois dos extermínios de há 60 anos. Está por provar a dimensão do abalo que a sua saída provocou no tecido social, económico e cultural nacional, até porque o grosso vinha de Espanha. O que não acontece com as grandes migrações do século XVII para a Holanda e para Inglaterra, directamente decorrentes da repressão inquisitorial mas com explicações que têm mais a ver com razões de rivalidade ou conflitualidade social da época, do que com anti-semitismo. Nisso, leia-se também Saraiva cum grano salis.
E já agora não se assimilem os críticos da Inquisição-instituição aos críticos do anti-semitismo. Inquisição reformada foi o que se quis, sobretudo no que ao aspecto prático de aproveitamento das potencialidades económicas da comunidade cristã-nova respeitava. “O esterco fora do seu lugar suja a casa e posto no seu lugar fertiliza o campo; e aplicando-se a doutrina e semelhança ao nosso caso, com o mais dos doutores digo, Senhor, que os judeus se tirem de onde nos sujam a casa e que se ponham onde nos fertilizem o campo”. A frase é do P. António Vieira (Cartas do Padre António Vieira, t. II, pp.365-371, ed. da IN-CM), pelo que é escusado andaram por aí a transformá-lo no Aristides de Sousa Mendes.
E posto isto, o que fica da questão da velinha no Rossio? Várias coisas: reacções naives de sentimentalismo popular despoletadas com facilidade num povo de carentes afectivos a nadar na aridez cultural e na falta de sentido crítico que caracterizam as nossas massas. O problema é que já não estamos em 1506, mas continua a haver “bem pensantes”, desses das bandas do politicamente correcto, que com habilidade manipulam esse cocktail de propensão ao sentimentalismo lacrimoso eivado de ignorância. Reacções também, de pobreza cultural ou meramente analítica por parte de uma direita de quem se esperaria mais chispa e maior poder de argumentação face à imbecilidade facilitadora da contraparte. O confrade Jansenista tem nisso toda a razão no que comenta. Como muita razão tem Combustões no diagnosticar das mazelas que ainda hoje perduram, efeitos longínquos dos policiamentos de espírito, e que outros tantos policiamentos e correspondentes denúncias de desvio à ortodoxia da “correcção de pensamento” e censuras parecem hoje gostosamente suscitar entre consideráveis camadas da população, nomeadamente as que se arrogam de ser “esclarecidas”.
Posto isto, para quê ir ao Rossio verter lágrimas, para quê inventar “causas”? Não acham que os Portugueses não têm já bastantes razões e bem reais para se carpirem? Qual o objectivo de criar-lhes no espírito mais (injustos) sentimentos de culpa, num momento em que tanto se carece de auto-confiança e de amor próprio?
Velas punha-as eu por nós todos: é triste ver que, tanto na vulnerabilidade como no primarismo dos estímulos, pouco mudámos desde o tempo de Damião de Góis.
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