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Je Maintiendrai

"... Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche". Pol Vandromme

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Tuesday, December 12, 2006


PORTUGUESES EM TERRAS GELADAS - II


“… -- E o meu filho?
-- O seu filho, mestre Brás. E todos os Portugueses! Vossemecê sabe lá, desde a Es­panha até a esse fim do mundo da Rússia, como a gente se cobriu de glória! Quando era preciso marchar e morrer, lá iam, à frente, os Portugueses! Negros, alegres, tisnados do sol, com as barretinas de pele chapeadas de cobre, as baionetas adiante dos olhos, faiscando nas cargas, quantas vezes nós nos atirámos para a morte, a cantar as cantigas da nossa terra! E o Imperador -- juro-lhe, mestre Brás, por estas três divisas! -- já não via outra coisa senão os portugueses! – “Quem são aqueles carvoeiros que se batem como leões?” -- perguntou ele em Wagram. E quando lhe disseram que era a Legião, que éramos nós, o Imperador empinou-se nos estribos e gritou aos marechais: “Qu'on ménage les portugais” Poupem-me os Portugueses, que são os melhores soldados do mundo!
-- Estava lá também o meu filho? -- per­guntou o ferrador, o pichel de estanho a tremer-lhe nas mãos, chorando e rindo.
-- Estávamos todos, mestre Brás. A gente não largava o Imperador, nem ele a nós. Quando dormia nos campos de batalha, e depois em Schoenbrun, eram os Portugueses que ele queria a guardá-lo, como se fossemos os seus veteranos de Itália. Quantas vezes, sozinho, encostado à minha arma, no silêncio da noite, à luz das fogueiras, eu velei o sono de Napoleão! Via-o ali, pela porta aconchegada dos casebres, entregue só à minha guarda, a dormir debaixo do seu capote cin­zento, a luz a bater-lhe na cara; olhava para ele e para mim; considerava a grandeza que a minha espingarda humilde protegia, e não era orgulho, mestre Brás, era ternura que me crescia cá dentro, e os olhos arrasavam-se-me de lágrimas, como se estivesse a velar o sono duma criança! Viessem duques, viessem marechais do Império, viesse Deus! com um português ali, ninguém lhe cruzava a porta; ia um passo a frente, a baioneta à cara: -- Passe de largo! Sua Majestade dorme!”
E diante do ferrador, que o olhava vibrando de comoção, os olhos rasos de água, Miguel contava agora as cargas gloriosas de Ebersdorf, coruscantes de baionetas portuguesas; os horrores da retirada da Rússia, marcha interminável de farrapos, entre gelos eternos e aldeias incendiadas; o frio, a fome, os cossacos, os olhos vermelhos de oftalmias, os festins de cavalos mortos, as revoadas negras de corvos crocitando sobre a neve branca; mostrava-lhe, voltado para o sol que entrava de chapada pelo quarto, as cicatrizes que lhe cortavam o peito e a cara, uma sabrada em Wagram, uma baionetada em Smolensko, uma bala em Saragoça, as divisas e o bastão de sargento em Moscovo. -- Só me faltou morrer, mestre Brás, para ser feliz!
-- E o meu filho? -- insistia o ferrador, numa expressão ao mesmo tempo de angústia e de orgulho, a barbuna branca pungindo, os olhos brilhando na máscara curtida da forja. --Também foi ferido, o meu filho? -- O seu filho bateu-se como os outros ! Cuida vossemecê que foram só os homens feitos, a arrancar como leões? Não! Também as crianças, também os clarins de onze e doze anos, que lá iam três na cavalaria do Loulé, também os tambores, os pequenos tambores da Legião, pouco maiores que as jaquetas que traziam, os tambores do tamanho do seu filho, mestre Brás, — que eram o sorriso e a bravura dos regimentos, e que marchavam para a morte, batendo a carga, como quem vai para uma festa !
E enquanto, lá baixo, na loja, o fole da forja roncava e os martelões de ferro retiniam nos rompões das ferraduras, o Miguel contou como um pequeno tambor da meia brigada do bravo coronel Pego se tinha coberto de glória na véspera de Wagram. O corpo de exército do duque de Reggio, onde estava incorporada a Legião portuguesa, passara o Danúbio, em pontes de barcos, debaixo dum céu negro de tempestade. A trovoada rugia; a artilharia troava; pesadas cordas de agua fustigavam, chicoteavam, assobiavam nos penachos vermelhos dos kaulbachs da Guarda, nos shakos enormes chapeados de cobre, nas baionetas que se alinhavam, lampejando, em colunas de batalhão, sobre as massas escuras dos capo­tes. Um nevoeiro espesso envolvia os granadeiros gigantescos e os galhinhos imberbes de Oudinot; pesava sobre os hussardos, os dragões, os couraceiros de Davout, escalonados como serpentes de escamas de ferro; escondia a Guarda velha, brônzea, solene, eriçada de águias, batida sempre do vento impetuoso da glória. O Imperador, rodeado do seu estado-maior, expedia ordens. Soavam clarins; tilintavam sabres nos estribos. De repente, já antemanhã, das alturas de Rutzendorf, duas baterias austríacas, de emboscada, apoiadas nas tropas do arquiduque Carlos, romperam o fogo. Napoleão mandou a divisão de Oudinot desalojá-las e tomar a posição à baioneta. Mas a artilharia, estoirando, abriu clareiras de sangue, varreu pelotões inteiros; as tro­pas do duque de Reggio, colunas espantadas de galuchos, fugiram, como pardais, e os três batalhões Portugueses, que ocupavam a retaguarda, pardos, compactos, serenos, encontraram-se frente a frente do inimigo. O fogo das batarias recrudesceu; clarões de inferno, coroando as cristas da posição, espalhavam a morte; quebrado o primeiro ímpeto, os batalhões, esfrangalhados, unidos ainda pela bravura do coronel Pego e do valentíssimo Stwart, que os animavam, que lhes gritavam, que os sacudiam: «Para a frente! para a frente!», recusavam-se já a marchar, iam dispersar-se, desordenar-se, fugir. Então, o tenente-coronel Baltasar Ferreira Sarmento, erguido sobre o cavalo, a espada no ar, apontou aos soldados estupefactos um pequeno tambor da Legião, que, indiferente ao perigo, os cabelos ao vento, o peito às balas, enorme na sua bravura, avançava sozinho, montanha acima, batendo a carga. Atrás daquela criança, que era um herói, os batalhões, negros de pólvora, unidos como um só homem, caíram à baioneta sobre os austríacos, rugindo, uivando, cantando. Estava tomada a posição. Dali a pouco, no campo, perante o cadáver do pe­queno tambor caído de bruços e crivado de balas, o coronel Pego, com as lágrimas nos olhos, contava a Napoleão e aos marechais como aquele pequeno de catorze anos conduzira à vitória os batalhões portugueses. Os soldados choravam. O sol rompia o nevoeiro da manha. E enquanto Oudinot, comovido, cobria com a capa cinzenta de marechal o corpo mutilado, Napoleão, tirando do peito a sua cruz da Legião de Honra, deixou-a cair sobre o cadáver do pe­queno tambor.
-- Foi então -- continuou Miguel -- que eu avancei e disse ao Imperador: «Sire, conheço o pai deste rapaz; deixe-me levar-lhe a cruz, em vez de o enterrar com ela!»
E diante do velho ferrador, que tremia e chorava em silencio, Miguel levantou-se do banco de castanho, descobriu-se, tirou da algibeira do capote uma pequena cruz de oiro presa a uma fita vermelha, e disse, entregando-lha solenemente:
-- Aqui tem, mestre Brás, a cruz da Legião de Honra que o seu filho ganhou.
Dai por diante, o velho ferrador de Manique nunca mais pensou em mudar a escorva à escopeta, e só pedia a Deus que lhe desse vida para poder contar a toda a gente a gló­ria do filho.”

Júlio Dantas, “O Tambor” in Pátria Portuguesa.

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