RETRATOS DE TRABALHO VI - ARNOSO
"N’este livro fica o que quatro meses passados em Pekin nos ensinaram. Quatro meses em que a única distracção que tínhamos para o nosso trabalho, era o íntimo viver com a amável e diminuta colónia estrangeira composta pelo corpo diplomático, empregados da alfândega e professores do colégio de Tung Wen. Colónia que vive entre a mais numerosa população e a mais hostil que se possa imaginar, com os requintes de toda a complicada civilização ocidental; montando a cavalo ao nascer do sol durante horas seguidas; partindo aos grupos em alegres piqueniques para o campo; jogando sob um sol abrasador fatigantes partidas de lawn tennis; patinando doidamente mal chega o Inverno; decotando-se e enfiando casacas para jantares cerimoniosos e até dançando algumas vezes em pequenos raoùts íntimos, n’um constante exercício físico para resistir ao clima e poder conservar ao espírito a sua indispensável lucidez, tendo para tudo isto de atravessar, entre vaias dos indígenas, as estrumeiras das indecorosas ruas de Pekin. Por isso foi com verdadeiro prazer que no Tsung Li Ya Men comemos no dia da assinatura do tratado o almoço da despedida. A assinatura, a que assistiu Sir Robert, teve lugar no pequeno pavilhão das conferências. Passámos depois por uma longa série de corredores e pequenos pátios descobertos, para um pavilhão mais vasto onde se serviu o almoço. À esquerda do Príncipe Shin, conforme manda a etiqueta china, sentava-se o Ministro de Portugal; à direita nós. Seguiam-se, por ordem de preeminências, os restante membros do Tsung Li Ya Men e Sir Robert. Não se faz ideia da quantidade de pratos de que constou tão pantagruélico almoço. Primeiro doces de toda a espécie e feitios, depois delicadíssimas e saborosas iguarias desde os famosos ninhos de andorinha até às perfumadas barbatanas de tubarão e sementes de nenúfares e por ultimo o clássico arroz servido em finas tigelas com um molho saboroso. Sobre a mesa frutas cortadas aos bocadinhos em pequenos pires. Pouco antes de servido o chá, dois criados foram passando a cada conviva o famoso e nojento pano, escaldado em água a ferver, que os nobres mandarins sucessivamente passam pela cara e cabeça, defendendo com a mão esquerda o comprido rabicho. A nós pouparam-nos semelhante ablução. Fizeram-se as saúdes do estilo, dizendo o príncipe a Sir Robert que n’aquela noite ele poderia dormir descansado, e ao plenipotenciário português que a natureza se tinha posto do seu lado evitando que os gelos fechassem o Pei Ho antes da assinatura do tratado. De perna traçada e saboreando um charuto, um dos mandarins, tendo lobrigado o tecido de malha das minhas ceroulas, pediu me que levantasse um pouco mais a calça para ver o que aquilo era! Satisfiz-lhe a curiosidade, e todos à uma se extasiaram diante de tão simples artigo de toilette. Entre mesuras e shin shins abandonámos o Tsung Li Ya Men recolhendo a casa, na rua das Legações, onde para a despedida nos esperavam os colegas com quem mais de perto tínhamos vivido. O sol do Inverno, baixo e pálido, derretia a custo a geada que se estendia como um lençol de linho por sobre as nojentas ruas de Pekin; as arvores sem folhas, como esqueletos mirrados, davam aos jardins das legações o lúgubre aspecto de cemitérios profanados; chinas das classes baixas abrigados pelas peles dos brancos carneiros mongóis, com barretes também de peles na cabeça e as orelhas resguardadas por pequenos envolucros de pano, fantasticamente bordados com ornatos extraordinários, e seguros por uma fita atada sob a barba, passam contentes no labutar continuo da vida; crianças cheias de vida, encantadoras com os seus capuzinhos de pano terminado sobre a cabeça por uma vermelha crista de galo, espetada ao alto, parece saltarem atrás de invisíveis galinhas esquivas... No momento da partida, os culis da casa de Mr. Tallieu, onde habitávamos, fizeram arder os panchões, que estalaram alegremente. Depois tomando a minha bengala onde a amizade mais provada gravara em letras d’ouro: – “De Lisboa a Pekin bordão de peregrino” – fomos caminho de Tien Tsin vencendo essa enorme distancia, ao galope dos machos das carretas, para ali tomar o ultimo vapor que antes de fechado o Pei Ho largava para Shanghaï. Quinze dias mais tarde, a bordo do Satsuma, deixávamos definitivamente a China, percorrendo o Japão e a América, com os olhos fitos n’este pedaço de terra tão amado, a nossa querida pátria. [...]"
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