A TIRANIA DA RESPOSTA. AO JANSENISTA
Já calculava que o tema do tiranicídio seria caro ao Confrade Jansenista e que o traria a terreiro. E já que tive a honra de um post ad hominem, vamos ao desforço que também é agradecimento. Uma nota prévia para lhe dizer com franqueza de confrade que talvez se tenha considerado em demasia atingido pelo meu comentário. O que não é justo para si, nem para mim. Assim, para abrir terreiro à tréplica, vamos limpar as demasias: a referência aos Americanos não lhe deve servir de garruço, porque de facto, para minha informação e proveito, o vou lendo a si como divulgador criterioso do que de bom há naquelas paragens; o que não impede que nestas sendas da História do Direito e das Ideias Políticas – sobretudo no campo da neo-escolástica ibérica – ainda haja por aquelas bandas muita descoberta “da água da torneira”, muita concatenação risível, e, consequentemente, muita pestana a queimar, muito preconceito a superar, muita língua a aprender para poder ler, muito livro a digerir do bom que nesta matéria e por esta Ibéria se produziu entre os anos 20 e 50. Como de garruço lhe não deve caber também (de todo) o reparo do "chumbo", que lhe passa por cima, direitinho a quem eventualmente se identificará com ele (até porque lá deixei a morada). E posto isto, ficamos à vontade, porque, em termos de Mestres, pelos vistos, frequentámos as mesmas más companhias.
Do essencial que entendo da crítica, o Confrade parece confundir ou laborar na confusão da traditio ou da continuidade das problemáticas, com o efémero ou a validade circunstancial das respostas produzidas ao longo de um continuado processo de criação. E vamos distinguir no caso vertente: para um lado estão questões objectivas que efectivamente poderiam interessar nesta questão de Saddam (p. ex. a definição hodierna da “tirania” e do “tirano”, a da legitimidade da acção directo do individuo ou da comunidade sobre o “tirano”, a da extensibilidade dessa legitimidade a uma “comunidade internacional”, a da medida da acção tomada, etc. Questões todas, que eu visse, não foram tocadas. Pelo contrário, o que vi foi trazer anacronicamente à colação a outillage conceptual e o valor operativo de soluções doutro tempo e doutro contexto politico, jurídico e cultural. De facto, não fui eu quem trouxe à discussão os nomes de Mariana e de Suarez a propósito do “tirano”, do “tiranicídio” e de Saddam.
Mais: o Confrade, se o não leio mal, esbate esses dois planos distintos – o da continuidade das problemáticas e o da circunstancialidade das respostas – levando a questão para um quadro de “espaço e tempo”. Começo por esclarecer, perdoe-me-me o Confrade, que não me cala de todo a desculpa da liberdade nominalista para ter como flatus vocis conceitos ou definições cuja precisão ou estabilidade são os garantes de uma discussão séria e rigorosa. Deixemos esse nominalismo para os homens dos media. Afirma o Jansenista que as ideias e os conceitos, sobretudo os políticos, têm e é possível muitas vezes fazer-lhes a genealogia, libertando-os da fortuna da envolvência de uma época; pois concerteza que sim. Mas não há que confundir genealogia, com continuidade ou sequer “continuidade evolutiva” ou “continuidade consciente”. E sabe porquê? Sabe certamente, porque já o disse: porque as ideias são de quem as lê, as interpreta e as transmite, voluntária ou involuntariamente, como suas (acrescento eu). E é esse (felizmente) o factor das inúmeras soluções de continuidade, eu arriscaria mesmo a traditio de soluções de continuidade que caracterizam o “princípio de progresso” que faz a riqueza da cultura ocidental, por contraste, por exemplo, com a estaticidade das culturas orientais.
E repare que mesmo quando possível, a genealogia das ideias e dos conceitos tem os seus “bio-ritmos”, por vezes traiçoeiros. Interessa-lhe, por mero exemplo, o conceito de soberania: não fala nalguns autores da Antiguidade, mas invoca Bodin. Outro exemplo: debruça-se um dia sobre o ius navigationis não cita a abundante literatura bizantina mas vai direito a Grotius ou, melhor ainda, a Serafim de Freitas. A problemática do impium foedus levá-lo-á à leitura das teses de Alberico Gentili inflamadas pelo escândalo da aliança de Francisco I de França com o Grão-Turco de preferência à tratadística medieval sobre casos há muito esquecidos no Al-Andaluz. Botero ou Maquiavel vêm-lhe à cabeça a propósito da razão de Estado, mas esquece-se das formulações anteriores de Platão e de Tácito. Ao conceito de “guerra fria” atribui-o aos realistas americanos, e ignora a sua exacta formulação teórica no medievo Infante D. João Manoel. Sobre os conceitos de hostis e inimicus não vai aos gregos e aos romanos, mas louva-se, porventura, da genialidade de Schmitt no contraponto do amigo e do inimigo. A história do pensamento político e jurídico está cheia destes pontos de “representação” ou de “sucesso” arbitrariamente marcados muitas vezes por acidentes de oportunidade, divulgação e aplicabilidade prática que não têm necessariamente a ver com o apuramento do pensamento, mas que ocasionalmente ofuscam a fonte e o processo de tradição. É a sina do conhecimento humano, onde “só é novo o que se já esqueceu”. E à excepção do genial caso dos clássicos como Aristóteles para a Política, dos justinianeus para o Direito, de S. Tomás para a “Teologia política”, há uma dimensão temporal esgotada nas soluções de Grotius, de Bodin, de Suarez, ou do ius publicum europaeum de Schmitt, e maravilhosa coisa seria ver tais AA citados ou trazidos à colação em conferências internacionais sobre direitos humanos, desarmamento, património comum da humanidade, responsabilidade dos estados, direito marítimo. Digo-lhe, pois, por tudo isto, que se em nada me repugna associar uma problemática antiga ao nome de um caput schollae emblemático (v.g. Bodin, Maquiavel, Grotius, Vitoria, Suarez, Molina) – sem que com isso me sinta cair no que, com graça, definiu neste caso como o risco de transformar a casuística neoescolástica ibérica na «região demarcada» do tiranicídio -- nem por isso estou a afirmar a perenidade (descontextualizando) o mérito das respostas desses autores, continuando a insurgir-me contra o que insisto em reputar de “anacronismos”. Não há conceitos datados, mas há respostas datadas a problemáticas eternas no mundo dos homens, e – convirá -- mais facilmente datadas quando invocamos o nome de quem ou a escola de pensamento que as produziu num contexto cultural, religioso, jurídico ou político que provavelmente nunca se repetirá.
E aqui me fico, a ver se não chumbo.
Do essencial que entendo da crítica, o Confrade parece confundir ou laborar na confusão da traditio ou da continuidade das problemáticas, com o efémero ou a validade circunstancial das respostas produzidas ao longo de um continuado processo de criação. E vamos distinguir no caso vertente: para um lado estão questões objectivas que efectivamente poderiam interessar nesta questão de Saddam (p. ex. a definição hodierna da “tirania” e do “tirano”, a da legitimidade da acção directo do individuo ou da comunidade sobre o “tirano”, a da extensibilidade dessa legitimidade a uma “comunidade internacional”, a da medida da acção tomada, etc. Questões todas, que eu visse, não foram tocadas. Pelo contrário, o que vi foi trazer anacronicamente à colação a outillage conceptual e o valor operativo de soluções doutro tempo e doutro contexto politico, jurídico e cultural. De facto, não fui eu quem trouxe à discussão os nomes de Mariana e de Suarez a propósito do “tirano”, do “tiranicídio” e de Saddam.
Mais: o Confrade, se o não leio mal, esbate esses dois planos distintos – o da continuidade das problemáticas e o da circunstancialidade das respostas – levando a questão para um quadro de “espaço e tempo”. Começo por esclarecer, perdoe-me-me o Confrade, que não me cala de todo a desculpa da liberdade nominalista para ter como flatus vocis conceitos ou definições cuja precisão ou estabilidade são os garantes de uma discussão séria e rigorosa. Deixemos esse nominalismo para os homens dos media. Afirma o Jansenista que as ideias e os conceitos, sobretudo os políticos, têm e é possível muitas vezes fazer-lhes a genealogia, libertando-os da fortuna da envolvência de uma época; pois concerteza que sim. Mas não há que confundir genealogia, com continuidade ou sequer “continuidade evolutiva” ou “continuidade consciente”. E sabe porquê? Sabe certamente, porque já o disse: porque as ideias são de quem as lê, as interpreta e as transmite, voluntária ou involuntariamente, como suas (acrescento eu). E é esse (felizmente) o factor das inúmeras soluções de continuidade, eu arriscaria mesmo a traditio de soluções de continuidade que caracterizam o “princípio de progresso” que faz a riqueza da cultura ocidental, por contraste, por exemplo, com a estaticidade das culturas orientais.
E repare que mesmo quando possível, a genealogia das ideias e dos conceitos tem os seus “bio-ritmos”, por vezes traiçoeiros. Interessa-lhe, por mero exemplo, o conceito de soberania: não fala nalguns autores da Antiguidade, mas invoca Bodin. Outro exemplo: debruça-se um dia sobre o ius navigationis não cita a abundante literatura bizantina mas vai direito a Grotius ou, melhor ainda, a Serafim de Freitas. A problemática do impium foedus levá-lo-á à leitura das teses de Alberico Gentili inflamadas pelo escândalo da aliança de Francisco I de França com o Grão-Turco de preferência à tratadística medieval sobre casos há muito esquecidos no Al-Andaluz. Botero ou Maquiavel vêm-lhe à cabeça a propósito da razão de Estado, mas esquece-se das formulações anteriores de Platão e de Tácito. Ao conceito de “guerra fria” atribui-o aos realistas americanos, e ignora a sua exacta formulação teórica no medievo Infante D. João Manoel. Sobre os conceitos de hostis e inimicus não vai aos gregos e aos romanos, mas louva-se, porventura, da genialidade de Schmitt no contraponto do amigo e do inimigo. A história do pensamento político e jurídico está cheia destes pontos de “representação” ou de “sucesso” arbitrariamente marcados muitas vezes por acidentes de oportunidade, divulgação e aplicabilidade prática que não têm necessariamente a ver com o apuramento do pensamento, mas que ocasionalmente ofuscam a fonte e o processo de tradição. É a sina do conhecimento humano, onde “só é novo o que se já esqueceu”. E à excepção do genial caso dos clássicos como Aristóteles para a Política, dos justinianeus para o Direito, de S. Tomás para a “Teologia política”, há uma dimensão temporal esgotada nas soluções de Grotius, de Bodin, de Suarez, ou do ius publicum europaeum de Schmitt, e maravilhosa coisa seria ver tais AA citados ou trazidos à colação em conferências internacionais sobre direitos humanos, desarmamento, património comum da humanidade, responsabilidade dos estados, direito marítimo. Digo-lhe, pois, por tudo isto, que se em nada me repugna associar uma problemática antiga ao nome de um caput schollae emblemático (v.g. Bodin, Maquiavel, Grotius, Vitoria, Suarez, Molina) – sem que com isso me sinta cair no que, com graça, definiu neste caso como o risco de transformar a casuística neoescolástica ibérica na «região demarcada» do tiranicídio -- nem por isso estou a afirmar a perenidade (descontextualizando) o mérito das respostas desses autores, continuando a insurgir-me contra o que insisto em reputar de “anacronismos”. Não há conceitos datados, mas há respostas datadas a problemáticas eternas no mundo dos homens, e – convirá -- mais facilmente datadas quando invocamos o nome de quem ou a escola de pensamento que as produziu num contexto cultural, religioso, jurídico ou político que provavelmente nunca se repetirá.
E aqui me fico, a ver se não chumbo.
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