Mario Saa
Em tempo de judiarias e rememorações, ler aqui o estado da questão judaica em Portugal. Não se esqueceram de Mario Saa...
"... Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche". Pol Vandromme
Ao Jansenista
Sempre belas as palavras de Eneias perante as desventuras de Tróia e bela a carta com que me honrou sob essa epígrafe. Mas ao citar Virgílio o caro confrade Jansenista vai direito ao ponto que poderia ser o lacónico remate da minha resposta: mentem mortalia tangunt – as vicissitudes dos mortais tocam o espírito – o espírito maduro, aquele a que precisamente alude a genialidade (aqui tão helénica) da palavra de Paulo de Tarso, que também cita.
E a questão que nos traz à fala directa não parece, nem para mim nem decerto para si, a da maturidade do Espírito, maduro porque também apto à compreensão sensível do sofrimento humano, assente na plenitude do formoso e profundo conceito da virtude teologal da charitas , precisamente traduzido no pedaço dos Coríntios, que transcreve, pelo conceito mais próximo, mas não pleno, de amor.
Não lhe será difícil de ver que o ponto nas palavritas que por aí deixei (e que, falho de outro, tiveram o mérito de o motivaram à escrita) não tem a ver com o reconhecimento ou alheamento do sofrimento, um de tantos que a história inventaria. O ponto está no facto que me repugna e sempre repugnará de ver instalado o primado das triagens humanas e mediáticas que não só graduam as prioridades no sofrimento como elegem a oportunidade, o modo e o local da celebração expiatória. Quantos sofrimentos não nasceram ao longo da História dessa pretensão eivada de orgulhosa pedagogia? «“Não tomes, não proves, não toques”…Proibições que se tornam perniciosas pelo uso que delas se faz e que não passam de preceitos e doutrinas dos homens» (Paulo, Colossenses, 2, 21).
E quanto às velinhas no Rossio e ao resto, no foro dos excessos da expressão de sentimento, de minimis non curat praetor. É uma simples questão de gosto.
HOMENAGEM AO CONDE DE PARATY
D. Miguel de Noronha de Paiva Couceiro, 4º Conde de Paraty (1909-1979), podia ser lembrado como portador de dois nomes ilustres, um da velha fidalguia de sangue, o outro o da fidalguia do carácter de seu pai Henrique. Na sua natural elegância e discrição, não era homem para se valer disso, e lembramo-lo hoje aqui como mais um outro daqueles nomes que é injusto que se dissolva na já fraca memória portuguesa. Memória das letras e das artes, porque a umas e às outras cultivou com notabilidade que por aí voga discreta. Oficial de Cavalaria de seu mister, andou pelas Áfricas e pela Índia, onde foi Governador de Diu no início dos anos 50. Desenhador de grande mérito, o seu traço era ímpar, originalíssimo e de grande beleza, disperso na ex-librística e na ilustração de algumas obras que deixou. Escritor, o lavor da pena do Conde de Paraty não era menos belo que o lavor do traço, recuperando com originalidade um português terso e elegante, liso e cheio de graça. Não é por acaso que a uma das suas obras mais interessantes, Diu e Eu, a tenha prefaciado o erudito Aníbal Pinto de Castro, que, nela notando “um apurado gosto de escrever e fina sensibilidade para o desenho, fica-se então com a noção exacta do que seja um homem verdadeiramente culto”. Diu e Eu, dedicada aos “Portugueses do Índico” e publicada em 1969 pela Agência Geral do Ultramar, recolhe em 20 capítulos ilustrados pela sua pena, mais um epílogo (gastronómico), uma “série longa de saborosas pinturas onde conseguiu fazer, simultaneamente, história, livro de viagens, e memórias pessoais”, vinte episódios cheios de humanidade e de pitoresco dos anos do seu Governo da velha praça de Diu (1948-1950) que se vê ter amado e que ao seu sentido de justiça e sensibilidade artística lhe fica talvez a dever muito do ímpeto da sua sobrevivência e da dignidade que ainda hoje ostenta.
Das relações de meu Avô, lembro-me ainda do Conde de Paraty, e, tendo lido Diu e Eu, excitava-me a imaginação pensar que par detrás daquele senhor muito sereno e muito distinto, de sorriso irónico, estava o último dos homens de espada e pena que um dia governaram a Índia Portuguesa.