ADVERSUS PRAXEAM
Antes da ordem do dia seguinte, em noite de insónia por excessos do dia anterior
A benefício da reafirmação da minha crença que escrever nesta área da blogosfera supõe uma atitude muito própria das velhas tertúlias, apanho o dardo do Jansenista, e procuro devolvê-lo à precedência. Podia não o fazer, levando estas caturreiras demasiado a sério, e susceptibilizando-me com as acusações preliminares que o Confrade me faz de (pelos vistos reiterada) sobranceria e condescendência. Quem me conhece tolera simpaticamente muitos defeitos que tenho, mas não, decerto, o de ser sobranceiro e o de cultivar a arte do patronizing. O Confrade atura aqui muitos comentários de variegadas proveniências, responde-lhes, irrita-se manifestamente; lá tem as suas razões e as bitolas por onde mede a grossura do chumbo que utiliza na volta do correio. Faça-me é a justiça de não considerar os meus comentários e as trocas de argumentos (e temos tido várias, com proveito meu) à luz de intuitos que, da minha banda e com todos os confrades, são simples e límpidos: troca de ideias, respeito, boa educação, gosto pela argumentação, humor, e também - não tenho nenhum problema em dizê-lo – aprendizagem. Saltaram-lhe da pena aqueles qualificativos porque leu no meu texto (onde a pena procura às vezes dar ideia da vivacidade verbal de uma discussão de tertúlia) algo que o dispôs a considerar o intuito do meu escrito como ofensivo? Tenho pena, porque ele é inexistente. Trata-se de uma figura de estilo, um expediente retórico que usou como expediente de captatio benevolentiae? Tenho pena também, porque mesmo para estilo soa um pouco despropositado e poderia ter o resultado inverso.
Mas vamos ao que interessa, para cumprir com o propósito.
Epígrafe
Não acredito que daqui saia muita coisa, porque, já dizia o velho das cautelas, “opiniães são opiniães”. Mas vou, caro confrade, pegando nas suas, esclarecer as minhas; é meu direito. E em primeiro lugar, e porque nos lêem, recordo que, fundamentalmente, escrevi o que escrevi a partir de um passo seu, que citei, e que torno a citar porque o Confrade, na réplica, entendeu não se lhe referir directamente. Ele aqui vai:
“Contraponho mesmo que não há Europa sem Turquia: o Direito que circula no continente europeu é um legado bizantino, uma reconstrução «oriental» da prática romana; a arte «grega» é geograficamente quase toda turca; Tróia é turca; sem a influência turca não teríamos, nem a estética veneziana, nem a russa; sem a Turquia não teria sobrevivido muita da tradição literária da patrística, sem a sua sombra tutelar muitos dos lugares sagrados do cristianismo não seriam senão uma recordação livresca.”
Posto isto, aqui também vão os esclarecimentos do que disse, e que, pela resposta, me parece não ter entendido, certamente por falta minha.
Do Solo e da Geografia
“O Confrade Je Maintiendrai não gosta de argumentos geográficos, entendendo que isso seria «turquificar» ardilosamente coisas que se passaram efectivamente ali, mas que pelo facto de se terem passado ali não podem ser legitimamente invocadas por quem ali habita presentemente. Retenho o argumento e usá-lo-ei da próxima vez que vir alguém manifestar orgulho em ser português ou lisboeta pela simples circunstância de ter nascido ou viver em Portugal ou em Lisboa.”
Com toda a franqueza, não me parece que o argumento lhe faça honra estribado como está; identificação, tradição, continuidade referencial; é, ou melhor, foi nisso que se construía e fundava a nacionalidade, a cidadania e o sentido de pertinência. Penso que será isso o que está por detrás do facto de ainda hoje muitos desses “alguéns” – rejeitando ser apátridas, órfãos identitários ou meros citoyens du monde -- afirmarem o orgulho de ser portugueses e lisboetas, ou aveirenses ou escalabitanos. Continuo a pensar que as tradições, o sentido de pertença, a identidade histórica e cultural da Turquia de hoje tem tanto a ver com Justiniano, o Santo Estilita, o Cristianismo, a Tróia de Homero, os mosaicos dourados das basílicas ou o espírito da translatio constantiniana, como eu tenho a ver com a Dinastia Ming e as culturas pedregosas de Machu Pichu. Se se está a referir aos africanos arribados da cubata à periferia lisboeta, aos jogadores búlgaros de foot aqui casados ontem para efeitos fiscais, ou às brasileiras em busca de BI nacional pela via nupcial ajustada num cabaret, é outra coisa e já cá não está quem falou; mas também vou registar o argumento em sede de eventual discussão sobre a questão da legislação da nacionalidade.
Do Hinterland
“Talvez haja alguma contradição no facto de, depois de se menosprezar o argumento geográfico, se chamar à colação o facto de o hinterland turco destoar do panorama urbano. Mas mais decisivo é que, se passamos à consideração da «paisagem do hinterland», então ficamos privados de dizer seja o que for acerca de «culturas nacionais»”.
Ora essa?! E que tem isso a ver com a minha digressão turística pelo hinterland turco? O Confrade Jansenista é que decretou “que não há Europa sem Turquia” escorando o argumento com a Turquia bizantina e a sua ligação umbilical a um passado comum. Será que depois de passear pelo hinterland se não percebe bem que a Turquia bizantina é meramente urbana e turística (se for)? Daí virão, certamente, aqueles “turcos urbanos, litorais e cosmopolitas” pelos quais o confrade tem manifesta simpatia e candidata hipoteticamente à preferência de entrada numa Europa em que não acredita.
Das Etnias
“O argumento étnico, nas palavras de Je Maintiendrai (ilustradas com o exemplo do hinterland), só serve para me dar razão: não há uma «etnia turca», ponto final. Não pode excluir-se, portanto, essa «etnia» com base em argumentos «étnicos»”.
Dou-lhe toda a razão caro Confrade, embora a questão da “etnia turca” não a tenha levantado; devolvo-lhe, portanto, o eventual argumento.
Da Bizantinice
“Tróia é turca”. Sem dúvida. O que só acentua a curiosa potencialidade da “turquificação” por efeito geográfico. Mas vamos escavar um pouco mais fundo. Se sabemos onde hoje fica Tróia ou nos extasiamos perante a fachada da biblioteca de Éfeso e outras maravilhas da Turquia mediterrânica, a gerações de arqueólogos europeus o devemos porque tiveram a arte e engenho para lidar a golpes de bakshish com a “sombra tutelar” das autoridades turcas. Se admiramos no British Museum os mármores do Partenon, à mesma oportuna corrupção exercida por Lord Elgin o devemos; pior sorte teve o dito templo, infelizmente explodido quando foi usado como paiol pelos Turcos. Mas isso hoje é problema dos Gregos.
Se não fora Ravena, Veneza, Kiev, Moscovo, mais a sua ortodoxia, e mais os armários da Biblioteca Apostólica Vaticana recheados com as colecções do Cardeal Bessarion exilado da Constatinopla caída, mais os cartapácios justinianeus com as glosas e a palavra dos canonistas conservados nos mosteiros da Itália, França ou Germânia, bem podia o Confrade andar hoje de lupa em punho na Turquia à procura dos efeitos dessa que chama a “sombra tutelar da Turquia” (otomana? ataturkiana?) na “tradição literária da patrística” queimada ou rasgada, ou em “muitos dos lugares sagrados do cristianismo” convertidos depois da queda de Constantinopla em mesquitas de mosaicos arrancados ou caiados, em estábulos, em hammans e armazéns.
Da Identidade
Escreve o Confrade: “o que sustentei, e sustento, é que não há uma «identidade cristã» que possa ser autonomizada e caracterizada, e menos ainda uma que possa servir de factor de exclusão (exemplo: integramos os protestantes e excluímos os ortodoxos? deixamos de fora os católicos tradicionalistas, ou os católicos Vaticano II? amnistiamos todos os cismas e heterodoxias? esquecemos as Guerras de Religião?). A menos que, em alternativa, digamos que aquela «identidade cristã» recobre tudo, e nesse caso ela perde qualquer utilidade semântica”.
Recobre tudo, exactamente; e precisamente porque como identidade essencial diz respeito a uma dimensão que é absolutamente alheia a vicissitudes de praxis ou opção interpretativa de verdades de praxis. Creio que, uma vez mais, confunde, desta feita, “identidade cristã” com uma “prática de cristãos” de que não falei. Confusão, em meu entender, desnecessária. O Catolicismo não é uno apesar da distância que vai do Papa Bórgia a João Paulo II? Bento XVI e o Patriarca de Constantinopla não se abraçaram apesar de muitos séculos de cismas e diatribes? Jesuítas Portugueses não se entenderam em latim com boiardos russos nas barbas do Imperador da China? Os inimigos ferozes de mil anos de guerras europeias não continuam a querer construir a Europa? Os católicos atravessam o canal da mancha em comboio veloz rumo a Londres a pensar na révanche pelo martírio de S.Thomas Morus? Aristóteles, Cícero, Platão, S. Inácio, Maquiavel, Kant, Dante, Erasmo, Voltaire, Proust, Schiller, Shakespeare, Pessoa, Bach, Mozart, Rembrandt, Miguel Ângelo, Velásquez, João Paulo II, Teresa de Calcutá, não são mais familiares aos Europeus de hoje do que é a história dos cismas, das campanhas de Napoleão, dos Albigenses, dos Bizantinos, do Girondinos ou da Conferência de Berlim? Eu acho que sim. E sabe porquê? Eu acho que sei, e aqui o torno a escrever: porque estamos todo os dias a escrever, a pensar e a reagir em função dessa moldagem cultural que resulta da cristianização dos Clássicos, e que, é de facto, o elemento estruturante e genésico do nosso pensamento, independentemente de sermos estóicos, epicuristas, escolásticos, kantianos ou nihilistas, laicos ou praticantes da igreja escocesa ou católica romana.
Do Direito
Quanto ao “Direito que circula no continente europeu” ser “um legado bizantino, uma reconstrução «oriental» da prática romana”, continuo na minha, que não é essa. Não duvido da respeitabilidade das fontes onde o Jansenista colheu a “paralaxe” e a aparente omissão de tudo o que é continuidade e criatividade e que vai do republicano Mucius Scaevola ao Imperial Justiniano. Mas como bem saberá, Justiniano (ou melhor, o seu jurista Triboniano) foi sobretudo um grande compilador da ciência jurídica romana anterior, ciência que brilhou, não pela orientalização bizantina, mas, sobretudo no sec. IV, pela conciliação do pensamento cristão com a sabedoria jurídica romana. Ou seja, o que o Jansenista leu, nos livros que pude ler nunca o vi, aos Mestres que um dia tive, nunca o escutei. Um deles era Sebastião Cruz e os outros uns espanhóis e uns italianos que não vale a pena citar porque ninguém já se lembra deles. E já agora, para acabar, outras “orientalizações”; mas que me lembre só têm a ver com a naturalidade dos juristas (e que juristas) -- Papiniano, Ulpiano ou Modestino, mas todos eles, zut!, três séculos anteriores a Justiniano -- ou com questões de teoria do Poder e divergências de trajectória em sede de questões político-eclesiásticas, e não do Direito que aqui “circula”.
A ideia da continuidade romana e a da descontinuidade bizantina daria pano para mangas e é tarde. Mas já que me dá a deixa para um espirro primário de pseudo-erudição, não lhe ensino, mas só lhe recordo (porque é jurista e é culto) a benefício da contraposição Roma/Bizâncio, que a mais célebre formulação e síntese jurídico-política da ligação entre Roma e o mundo --- Roma communis patria --- foi formulada por juristas e codificada por um Imperador em Constantinopla (Digesta Iustiniani 50, 1, 33), sendo que por Roma se entendia uma unidade quase jurídico-religiosa, i.e. não só a antiga mas também aquela fundada “deo propitio cum melioribus auguriis, Constantinopoli” (Codex Iustinianus 1, 17, 1, 10).
E menti; porque me lembro agora que outra das únicas orientalizações que detecto (e não no domínio do Direito, mas do pensamento político) é a doutrina fragmentadora, abastardante, gerada na historiografia grega ou oriental, da translatio imperii. É precisamente daí que nasce a “ruptura constitucional”, ou seja, a ideia de Império, não romano como o concebiam os juristas de Justiniano, mas meramente bizantino ou do Oriente ou “dos Gregos”. É precisamente aí que se passa a contabilizar, não uma Roma, mas a sucessão das três Romas: a 1ª a cesárea, a 2ª a constantinopolitana e a 3ª, a moscovita, o romejskoe carstvo, o império romano do Oriente extinto com o seu Caesar, ou Czar, num dia triste de 1918.
Que canseira para os leitores; de Justiniano a Lenine, imagine-se…
Do Opinativo
Estamos, enfim, no capítulo do de gustibus…
Permita-me que não lhe dê meças na admiração e respeito por “uma civilização ímpar e milenar, da qual me orgulho imensamente como cidadão do mundo”; aliás, também sinto o mesmo pela dos Chineses e pela dos Indianos e nem por isso, a uns e a outros, lhes vou fazer o favor de assumir como europeu as dores do crescimento e do desenvolvimento que indiscutivelmente merecem. Aos Turcos, só por serem hoje a “primeira linha de defesa contra a mais grosseira e cruenta das barbáries”? Não dou para esse peditório; exemplos da perigosidade do argumento temos nós de sobra, deixe contar, na China dos 40’s, na Indochina dos 50’s, no Vietname dos 60’s, no Japão dos 50 aos 60’s, na Pérsia dos 70’s, alguns matutos até falam de Israel, já para não lembrar o piscar de olho europeu a Putin na questão da Tchetchenia, ou a Hu Jintao no problema dos muçulmanos do Jinjiang, ou mesmo ao bom do Musharaf no caso do Afeganistão. E esqueçamos o discurso da Alemanha de Hitler face à Rússia, ou o dos regimes coloniais em África perante o expansionismo soviético dos 40’s aos 70’s . Até o defunto Rei Hassan de Marrocos também um dia veio com essa conversa para os vizinhos europeus. É o Jansenista que assina por baixo o atestado de respeitabilidade da Turquia mantida na linha pelo pingalim dos generais ou a garantia de não-detonação do produto? Eu não, nem mesmo – como dizia o velho Vinicius de M. – “escrito em baixo Deus e assinado em cartório do Céu!”. Aliás, desde a queda do império soviético há alguma coisa segura, estável e fiável, no mundo político de hoje?
Mais, em sede de opinar: “…a parte final da argumentação de Je Maintiendrai, passando de lado os menos acolhedores remoques de «tansos» e «não-tansos», labora num erro, o de que alguém tenha sustentado que a Turquia tenha pretensões a ser «europeia», como se ser-se «europeu» fosse um galardão ou uma questão de mérito. Ninguém é «europeu» por mérito, e o que haja de positivo numa das facetas do legado cultural de uma parte da Europa (não sei o que seja «identidade europeia» ou fantasmagorias do género) levar-me-ia a excluir, por demérito, muitos milhões de pessoas que nasceram na Europa – e, sim, a incluir alguns turcos urbanos, litorais e cosmopolitas.”
E daqui lhe digo que não laboro em erro nenhum, porque o caro Confrade sofisma. Escrevi eu – e até remetia discretamente para o parecer de outros turcos também “urbanos, litorais e cosmopolitas” – que os “Turcos nunca olharam nem olham para a entrada na Europa como uma “reunificação” ou “ajuste histórico” a que aspirem de direito mas simplesmente como um processo de conquista de uma oportunidade, por via negocial, de consagrar e aggiornar um dos mais acarinhados objectivos de Ataturk: cortar com o passado e com o contexto cultural a que historicamente pertencem, pela adopção de ritos e compromissos que lhes assegurem a legitimidade da pertinência a um mundo que lhes foi sempre estranho, que é rico e que é tentador”. É um bocadinho diferente do que leu não é? De facto, não sei onde tenha eu escrito que a Turquia tinha pretensões a ser europeia: escrevi sim, e repito, que a Turquia tem pretensões a pertencer um mundo que lhe foi sempre estranho, que é rico e que é tentador; e acrescento, cuja chave da porta, por vontade de um sector dos europeus, lhe seria dada de bandeja, porque já foi dada a outros com títulos muito menos convincentes.
Ainda no opinativo, quanto a saber-se “se amanhã a ameaça nos chegasse primeiro à Península Ibérica, eu gostaria de saber que alguns irmãos turcos, vítimas ou não de uma «ocidentalização forçada», se empenhavam na nossa defesa por se orgulharem, também eles, de coisas que outrora se passaram neste espaço que fugazmente ocupamos em fideicomisso”. Francamente falando caro Confrade, e sem qualquer “sofisticação argumentativa” deste seu criado, não vá contando com isso; acho que os “irmãos turcos” se estariam positivamente nas tintas; para isso e para a regra de oiro.
Finalmente, com o Jansenista, admito que “do que se trata é de saber é se a Turquia vai continuar a defender os interesses de segurança da Europa, se é defendida ela própria ou se é «abandonada à sua sorte». Mas por mim passo; esta fica para outro. E como também não sou politólogo e comentarista político na tv, o que é dizer, a Sibila de Cumas ou a Pitonisa de Delfos, só me resta encerrar com um suspirado, “o futuro a Deus pertence”.
Nota final. Reconheceria sem dificuldade o lapsus calami de ter posto S. Tomás na Alta Idade Média; contudo, onde viu que o escrevesse e que sugerisse a sua correcção? Por estarem as palavras num mesmo parágrafo, aliás longo? Eu por mim, admito sem dificuldade o seu lapsus calami de ter posto S. Tomás a nascer na região de Ravena, rodeado de ícones bizantinos (“icon” à la americaine, não, decerto, no sentido pictórico)